A romancista PatrĂcia Melo foi a sexta convidada da 10ÂŞ temporada do Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, com patrocĂnio do ItaĂş, por meio da Lei Federal de Incentivo Ă Cultura. Neste ano, os encontros acontecem online, com transmissĂŁo pelo Youtube, e todo conteĂşdo tambĂ©m fica disponĂvel no site do projeto (paiolliterario.com.br).PatrĂcia nasceu em Assis (SP), em 1962. Entre romances e um livro de contos, publicou 12 tĂtulos. Mulheres empilhadas (2019), Gog Magog (2017), O matador (1995), adaptado para o cinema com roteiro de Rubem Fonseca, e Inferno (2000), vencedor do PrĂŞmio Jabuti, sĂŁo alguns de seus trabalhos de fĂ´lego. Na narrativa breve, lançou Escrevendo no escuro (2011).Realizado desde 2006, o Paiol Literário já recebeu 77 escritores. O prĂłximo e Ăşltimo bate-papo da temporada acontece no dia 7 de dezembro, Ă s 19h30, com participação da poeta pernambucana Cida Pedrosa. A mediação dos encontros Ă© do jornalista e escritor RogĂ©rio Pereira, editor do Rascunho.• Literatura enriquece
Há várias razões pelas quais devemos nos dedicar Ă literatura. Primeiro, porque ela Ă© sempre uma hipĂłtese. HipĂłtese de uma vida. É uma maneira de vocĂŞ vivenciar uma vida diferente da sua. De ter uma experiĂŞncia diferente e aprender. A maneira mais fácil de ver a importância da literatura na vida de um ser humano Ă© pensar nos livros que mudaram sua vida. Há livros que mudam nossa vida. Mudam nossa cabeça de tal forma que a gente passa a ter uma conduta diferente. Passa a ter uma perspectiva diferente. A literatura nĂŁo Ă© sĂł sonho, entretenimento, embora tambĂ©m possa ser, mas Ă© tambĂ©m autoconhecimento. Ela Ă© a vivĂŞncia de uma experiĂŞncia possĂvel. Ou de uma experiĂŞncia impossĂvel. É um mergulho na linguagem. Uma possibilidade de aprender, de maneira muito agradável, a estrutura da sua lĂngua. De aprender novos vocábulos. De melhorar sua maneira de falar. As vantagens de ser um leitor sĂŁo tantas. É atĂ© difĂcil elencar. A vida, sem literatura, Ă© como a vida sem o sonho. É pobre. Uma vida reduzida. Sempre brinco: a gente deveria ter duas vidas, uma para viver e outra sĂł para ler. Por mais que me dedique Ă literatura, estou sempre correndo atrás. Sempre achando que minha formação está cheia de buracos. Que há livros e mais livros que quero ler. Para mim, nĂŁo há prazer maior do que sentar em uma poltrona, pegar um livro e mergulhar na histĂłria.• Brechas para ler
NĂŁo tenho todo tempo do mundo para leitura. Sempre no intervalo entre escrever um livro e outro Ă© que faço um bom mergulho na ficção. Quando estou escrevendo, evito ler livros. Mesmo de autores de que gosto. Fico tĂŁo sensĂvel. É como se evitasse qualquer tipo de influĂŞncia. Geralmente, na fase que estou escrevendo, leio sĂł material de pesquisa, livros de referĂŞncia. Vou acompanhando resenhas no Rascunho ou cadernos literários — há tĂŁo poucos cadernos literários no Brasil, nĂ©? E estou sempre com uma pilha de livros para comprar e ler.• Expectativa
NĂŁo tenho ambição de causar uma transformação no leitor da minha literatura. Acho que a leitura pode engatilhar uma sĂ©rie de questionamentos que vá fazer com que o leitor acabe mudando. Agora, nĂŁo Ă© uma coisa automática. Provavelmente nĂŁo Ă© sĂł um livro que vai mudá-lo totalmente. É sempre um processo. Esse processo de transformação Ă© lento e contĂnuo. NĂŁo tenho muita expectativa de que meu livro mude o leitor. Mas tenho expectativa de que o leitor, ao ler meu livro, tenha abertura para alguma mudança. Por exemplo, no que diz respeito ao Mulheres empilhadas, meu Ăşltimo romance, no qual falo sobre feminicĂdio: minha expectativa era, sobretudo, que abrisse os olhos de muitos homens que acham, por exemplo, que a questĂŁo do feminismo ou da violĂŞncia contra a mulher nĂŁo diz respeito aos homens. Que eles nĂŁo tĂŞm que participar desse debate. Queria que meu livro despertasse essa urgĂŞncia no leitor. Agora, nĂŁo Ă© nem uma ambição. Quando estou escrevendo, nĂŁo chego nem a formular isso. Depois que o livro ganha vida, e que começa a chegar o feedback dos leitores, Ă© que vocĂŞ vai organizando isso na cabeça. Do que o livro está conseguindo realizar. Porque o livro, sozinho, se movimenta e está descolado do autor. É muito mais uma constatação, quando vejo a performance do livro e entendo onde Ă© que estou conseguindo chegar. É mais isso do que uma pretensĂŁo, uma ambição de conseguir essa mudança na cabeça do leitor.
Patricia Melo Foto: Adriano Heitmann

Patricia Melo Foto: Adriano Heitmann

“A vida, sem literatura, é como a vida sem o sonho.”
• Constelação de leituras
Daria para fazer uma entrevista inteira sĂł sobre os livros que mudaram minha vida. Um deles foi O estrangeiro, do Camus. Esse absurdo da vivĂŞncia, esse vazio sobre o qual Camus sempre fala na literatura dele, ecoou de uma forma tĂŁo profunda em mim… Acho que já o li umas dez vezes. Outro que teve um impacto profundo foi Crime e castigo, do DostoiĂ©vski. Quando falo em transformação do leitor, nĂŁo Ă© sĂł na sua maneira de pensar. Ela tambĂ©m tem a ver com uma questĂŁo estĂ©tica. Alguns livros me marcam profundamente pelo estilo. Pela maneira como aquela histĂłria Ă© contada. Outros livros me marcam pela densidade dos personagens, sĂŁo personagens que vocĂŞ passa a carregar a vida toda. Quem leu Lolita, do Nabokov, por exemplo? Lolita Ă© uma personagem que tem carne. VocĂŞ sabe perfeitamente quem ela Ă©. Ela Ă© tĂŁo presente na vida do leitor quanto um familiar, um parente. Ă€s vezes atĂ© Ă© muito mais prĂłxima de vocĂŞ como figura humana do que um primo, um tio. O que a literatura nos dá Ă© uma gama de possibilidades — estĂ©tica, experimental, no sentido de vivĂŞncia. Há livros que marcam especificamente porque há algo neles que ecoa em nĂłs de maneira direta. Mas, no fundo, o que vai transformar o leitor Ă© essa constelação de leituras. Em um livro há o apelo estĂ©tico, no outro há um personagem no qual o leitor se reconhece, e Ă s vezes atĂ© de maneira negativa, como um espelho assustador, no outro Ă© um espelho inspirador. É nessa dinâmica, na leitura de vários autores, que vocĂŞ tem a perspectiva de se enriquecer como pensador. Como ser humano. Como pessoa.• Sorte grande
Tenho a sorte de vir de uma famĂlia de leitores. Meu pai era um leitor, minha mĂŁe tambĂ©m. Havia uma biblioteca boa na nossa casa. Falava-se muito sobre literatura. Lembro de almoços de domingo, ou jantares no sábado Ă noite: todo mundo falava o que estava lendo. Todo mundo estava lendo algum livro. Isso foi uma coisa muito importante. Eu admirava meus irmĂŁos mais velhos e queria conhecer o que eles estavam lendo. Li Dez dias que abalaram o mundo, do John Reed, quando tinha uns 13 anos. NĂŁo entendi nada na primeira vez. O prĂłprio MacunaĂma… Tudo porque meus irmĂŁos mais velhos estavam lendo. Tinha esse incentivo grande em casa. Era uma famĂlia que lia muito.• Desafios modernos
NĂłs, leitores já formados, temos a sensação de que ler Ă© fácil. Ou seja, de que Ă© fácil abrir um livro e transcender. Mas nĂŁo Ă© fácil. A leitura exige um espaço de introspecção, de concentração — tudo que a vida moderna retira dos jovens. SĂŁo tantas as possibilidades que se tem para usufruir o tempo, seja na internet, nos vĂdeos, nas sĂ©ries. Esse espaço, o da introspecção, da concentração, precisa ser exercitado para ser aprendido. VocĂŞ nĂŁo aprende a ficar sozinho com um livro na mĂŁo, duas horas lendo, se nĂŁo se dedicar a isso e exercitar a leitura, atĂ© o momento em que ela se transforme num grande prazer. Falta, para a formação dos leitores hoje, exatamente esse aprendizado da solidĂŁo. Da introspecção. Da concentração. SĂŁo vivĂŞncias que a vida moderna praticamente retirou de cartaz. Tudo acontece num ritmo muito violento. Tudo muito cheio de imagens, sons. Isso Ă© muito triste. Quando nĂŁo se aprende a ter o prazer pela leitura, vocĂŞ tambĂ©m abre mĂŁo da fabulação. Do sonho. Da imaginação. VocĂŞ fica recebendo coisas prontas. Essa fĂşria de sĂ©ries que existe hoje em dia, por exemplo. Acho que ela tira muito do jovem o sonho, a possibilidade de ele fabular. É um exercĂcio que está embutido no exercĂcio da leitura. Quando vocĂŞ está lendo, está criando. VocĂŞ cria junto com o autor. Mas Ă© preciso aprender a fazer isso. É preciso ter um espaço na vida para exercitar a leitura, atĂ© se tornar um leitor.• Formação precária
Se a pessoa nĂŁo for bem alfabetizada, nĂŁo vai se transformar numa leitora. Porque nĂŁo vai conseguir nem ler e compreender um artigo de jornal. O que se vive no Brasil Ă© trágico. A gente está comprometendo completamente essas gerações futuras. A qualidade de ensino do paĂs está comprometendo a qualidade de vida dos cidadĂŁos. SĂŁo pessoas que nĂŁo terĂŁo esse instrumento importantĂssimo na formação de um cidadĂŁo que Ă© a literatura. Porque, nĂŁo sendo bem alfabetizado, vocĂŞ jamais vai se transformar num leitor. É muito difĂcil. É quase impossĂvel superar o efeito colateral da má alfabetização e conseguir, por meio do esforço individual, se transformar num leitor.• Cinema e TV
Meu sonho, na juventude, era trabalhar com cinema. O cinema foi muito importante na minha formação, nĂŁo foi sĂł a literatura. De fato, comecei minha vida profissional como roteirista. Trabalhei bastante com cinema e televisĂŁo. Agora, Ă© muito difĂcil vocĂŞ trabalhar com cinema no Brasil. Era difĂcil naquela Ă©poca, hoje acho que Ă© mais difĂcil ainda — com esse desmonte todo do atual governo, que acabou completamente com a produção do audiovisual. É praticamente impossĂvel vocĂŞ trabalhar com cinema. Naquela Ă©poca, vocĂŞ começava um projeto e o acabava quase dez anos depois. Tinha uma coisa muito frustrante. A televisĂŁo nĂŁo era o produto artĂstico que vocĂŞ sonhava em fazer, era quase que “enquanto nĂŁo consigo fazer meu trabalho autoral no cinema, deixa eu fazer televisĂŁo”. NĂŁo havia uma indĂşstria de produção de cinema no Brasil. Trabalhei muito tempo com televisĂŁo e me senti completamente esgotada. O trabalho de roteiro Ă© muito dialĂłgico, depende muito de uma equipe de produção. Houve um momento em que eu estava esgotada, aĂ decidi que iria parar de trabalhar com televisĂŁo.• Epifania
Foi quando escrevi Acqua Toffana [livro de estreia, publicado em 1994]. A liberdade que a literatura me proporcionou… Lembro que escrevi em um jorro, acho que em trĂŞs meses. O que provocou esse jorro foi perceber a liberdade que Ă© o espaço da literatura. Tive uma epifania mesmo, de vislumbrar e experimentar a liberdade como artista. Perceber que naquele espaço eu poderia fazer o que quisesse. Da forma que quisesse. No meu prĂłprio tempo. NĂŁo há limite para o que vocĂŞ pode fazer dentro de um romance. Foi realmente uma epifania. Dali pra frente, foi muito difĂcil voltar pro roteiro, pro cinema, televisĂŁo. Perdi completamente o prazer de escrever para o cinema e para a televisĂŁo, porque acho que falta nesses espaços exatamente a liberdade que a literatura me proporciona.• Momento certo
O momento em que lancei Acqua Toffana [1994] era curioso. As editoras estavam começando a se abrir para autores nacionais. Até então, a gente tinha muita publicação estrangeira traduzida. As editoras experimentavam pouco. Foi exatamente no começo da abertura dessas editoras que publiquei. Foi um momento muito rico dessa reformatação do mercado. As editoras estavam interessadas em autores nacionais jovens. Acho que talvez estivessem até mais abertas do que hoje. O que aconteceu foi isto: Acqua Toffana foi muito bem recebido. Eu estava um pouco com a vida de ponta-cabeça. Tinha acabado de ter filho, tive essa experiência maravilhosa com meu primeiro romance, e estava muito entusiasmada em continuar escrevendo.• Experiências únicas
Nunca consegui fazer um plano literário. Sempre faço um mergulho no livro que me proponho a escrever, sem pensar muito no que vai ser na sequĂŞncia. Sem tentar responder Ă s expectativas que sĂŁo criadas em cima da minha prĂłpria literatura. Tem sido isto: a cada livro, um novo desafio. Sempre encaro assim o inĂcio de um novo projeto. Um desafio que nem sei se vai dar certo. De repente, nĂŁo dá certo. Um desafio em termos de estilo, narrativa, temática. Sempre Ă© um tiro no escuro. Procuro escrever sem planejar muito, sem ter muita expectativa, para tambĂ©m nĂŁo me frustrar demais.• Liberdade
O que acho interessante, na vida do escritor, Ă© justamente a liberdade. Por exemplo, senti uma certa pressĂŁo quando escrevi O matador. Foi um grande sucesso — nĂŁo sĂł no Brasil, mas fora dele. Havia uma expectativa dos meus editores. Como se meu prĂłximo livro tivesse que ter a força d’O matador. Acho que Ă© muito frustrante pro escritor repetir uma experiĂŞncia que ele acabou de realizar no livro anterior. NĂŁo sei o que Ă© ter um estilo, mas imagino que significa exatamente isto: retomar experiĂŞncias de projetos anteriores em projetos em construção. Acho que isso Ă©, no mĂnimo, tedioso. VocĂŞ nĂŁo se impõe nenhum desafio, fica repetindo a fĂłrmula que deu certo. Tenho tentado, ao longo da minha carreira, a cada novo projeto, esquecer o livro anterior. Esquecer aquela experiĂŞncia.• Prazer do riscoLembro do poeta Joseph Brodsky falando que literatura e poesia sĂŁo espaços nos quais os profissionais que estĂŁo envolvidos sĂŁo quase obrigados a abrir mĂŁo de suas experiĂŞncias se nĂŁo quiserem se frustrar. É diferente dos outros profissionais que se beneficiam das experiĂŞncias que ganharam ao longo da realização de projetos. É exatamente essa a minha sensação. Quando começo um projeto, falo: “Bom, isso aqui nĂŁo quero. Já sei exatamente o que nĂŁo quero, que Ă© o que sei fazer”. O que sei fazer Ă© o que nĂŁo quero. Quero algo arriscado. Sentir que estou fazendo pela primeira vez.• Projeto gráfico
Gosto muito de acompanhar o projeto gráfico. Gosto muito dos processos de revisão, da capa, da escolha do capista. Nunca interfiro, mas gosto de estar presente nesses momentos. Acho importante, inclusive, porque a capa define muito o destino do livro. A capa deve ser sempre o fruto do diálogo entre um profissional que entende muito dessa questão do estilo, de como é fazer um projeto gráfico, e também do conteúdo do livro. Tem que ter um bate-bola entre autor e capista. É uma fase que acho bastante emocionante na produção do livro.• Eficiência da narrativa
O que aprendi como roteirista de cinema e TV Ă© o que chamo “eficiĂŞncia da narrativa”. No cinema e na TV vocĂŞ tem pouco tempo para contar uma histĂłria, entĂŁo Ă© preciso ser muito eficiente, saber exatamente como contar a histĂłria. O que eu trouxe dessas mĂdias foi isso, essa preocupação com a eficiĂŞncia. Com conseguir articular uma narrativa, que Ă© um arco. Ela tem desenvolvimento, ápice, tem que se resolver. Isso vem muito da preocupação como roteirista. Acho isso muito benĂ©fico para minha literatura. Porque eu, como leitora, sou muito crĂtica no que diz respeito Ă eficiĂŞncia das narrativas dos autores. Ă€s vezes, me incomoda: estou lendo e percebo que o livro está cheio de gordura. Pra que isso? Sinto que Ă© quando falta a mĂŁo do editor cortando. É difĂcil para o prĂłprio autor cortar. NĂŁo consegue cortar, o livro fica com barriga, sem ritmo. SĂŁo essas preocupações que eu trouxe do cinema e da televisĂŁo: ritmo, eficiĂŞncia. Foi muito positiva essa temporada no audiovisual.• Processo criativo 1
Acabei um livro novo, e esse processo sempre se repete. Cada livro tem uma escritura, uma pesquisa, atĂ© uma rotina de trabalho diferentes. Mas o que se mantĂ©m sempre Ă© o nascimento do livro. É sempre da mesma maneira. Estou no branco, sem saber o que vou fazer, nĂŁo sei o que quero fazer no prĂłximo projeto, aĂ começo a me interessar por alguma coisa especĂfica. Geralmente Ă© um tema. Sempre que estou lendo o jornal, escolhendo novos livros que vou ler, estou sempre privilegiando uma temática. Começo a mergulhar numa temática. Antes ainda de perceber que aquilo vai se transformar num livro. Na verdade, começo a pesquisar sem saber que estou pesquisando. E, de repente, penso: “Esse Ă© um material que posso usar em um romance”. Assim que tenho um tema, a primeira coisa que penso Ă© em quem vai contar a histĂłria. Quem sĂŁo os personagens que podem incorporar a temática. É sempre nessa sequĂŞncia: primeiro a temática, depois personagens, aĂ começo a pensar em uma histĂłria mesmo. Começo a fabular. Mas em uma fase muito experimental, sem saber atĂ© se vou seguir adiante com isso.• Processo criativo 2
De repente, tenho um ovo. Tenho esses personagens de que gosto, essa temática, aà começo a fase de pesquisa. Vou atrás de amigos que sei que podem me dar uma bibliografia, vou atrás de profissionais que trabalham com essa temática que quero conhecer. Geralmente é um assunto que desconheço totalmente. Isso dura uma média de um ano, mais ou menos. Só de leituras, anotações. Vou preenchendo um monte de caderninhos, até de conversas que tenho com pessoas que me interessam. Muita anotação de coisas que vejo, pessoas que conheço, trejeitos delas, frases que me falam. Vai tudo pra esse caderninho.• Ladrão e espião
Todo escritor Ă© um bom ladrĂŁo. Mais do que ladrĂŁo, todo escritor Ă© um espiĂŁo. Ele está sempre olhando pelo buraco de fechadura. É impossĂvel vocĂŞ deixar de ser espiĂŁo sendo escritor. O tempo todo vocĂŞ fica com a maquininha de espiĂŁo ligada.
“Mais do que ladrão, todo escritor é um espião.”
• Sopro das musas
Tem muita angústia na escritura. O que é a escritura? Um momento de busca. Você está buscando uma série de coisas. Uma estrutura, um personagem. Parte da criação acontece fora da mesa de trabalho. Mas uma parte muito importante acontece quando se está escrevendo. É importante que aconteça quando se está escrevendo. Se você decide tudo antes, sobra muito pouco espaço para a improvisação. Para as musas. É na hora que você senta para escrever que há a possibilidade de se relacionar com as musas, receber um sopro delas.• Vivência inteira
Tem angústia na hora que você está escrevendo, à procura de algo que não se sabe o que é ainda. Você vai achando, perdendo. Acha e perde de novo, tenta e dá errado. Mas há momentos de muito prazer. Momentos que dou risada com achados para os personagens, com diálogos. É realmente uma vivência inteira. Tem prazer. Tem tormenta. Dificuldade. Facilidade. Alegria. Tristeza. Desespero. Momentos de largar o livro, “talvez eu não vá conseguir fazer isso”. Tem tudo isso, em todos os livros. Sempre sinto que é o primeiro. As dificuldades são sempre as mesmas.• Brasil e violência
É muito difĂcil vocĂŞ entender o Brasil de hoje sem entender a violĂŞncia. O Brasil Ă© um paĂs muito violento. Na Europa, quando vocĂŞ fala que o Brasil tem 60 mil homicĂdios por ano as pessoas nĂŁo acreditam. É uma guerra civil. A gente mata mais do que determinados paĂses em guerra. Essa sempre foi uma questĂŁo estrutural na minha literatura. Sempre me interessei pelo fenĂ´meno da violĂŞncia. Sempre tentei entender por que o Brasil se transformou em um paĂs tĂŁo violento. Há muitas respostas para isso. Essas respostas nĂŁo sĂŁo conclusivas, sĂŁo muito abertas e estĂŁo em todos os livros que tenho escrito.• ResistĂŞncia
Cada vez mais, nĂŁo sei se pelo fato de eu estar vivendo fora do Brasil, ou se pelo fato de o Brasil viver um momento tĂŁo triste, tĂŁo infeliz da nossa histĂłria, com esse governo tĂŁo desacreditado, com essa desestruturação em todo sistema de educação, esse desmonte da cultura… NĂŁo sei se Ă© por conta de tudo isso, por conta dessa tristeza que Ă© hoje ver o Brasil, ler sobre o Brasil, mas estou cada vez mais conectada ao paĂs. Cada vez mais direcionando minha literatura para questões que acho importantes no Brasil de hoje. NĂŁo tinha isso muito articulado dentro de mim nos livros anteriores. Hoje, o Brasil Ă© uma questĂŁo importante na minha literatura. Quero me reportar a esse Brasil. Talvez porque neste momento tĂŁo desesperador a arte possa ser uma resistĂŞncia. Uma espĂ©cie de negação disso, algo como “nĂŁo Ă© possĂvel que seja assim”. Me sinto muito motivada a usar minha literatura como resistĂŞncia. Como uma forma de dizer: “Chega disso. NĂŁo aguento mais esse Brasil violento, esse Brasil homofĂłbico, esse Brasil misĂłgino, esse Brasil com um presidente genocida, com esse projeto fascista”. Imagino que muitos escritores estĂŁo sentindo essa barra pesada e usando a literatura como espaço de resistĂŞncia. O Brasil Ă© cada vez mais importante na minha literatura.• Percepção de fora
Morar fora do Brasil aguçou minha capacidade de enxergar os problemas do paĂs. Sabe por quĂŞ? O volume de violĂŞncia que se Ă© obrigado a engolir diariamente no Brasil Ă© tĂŁo grande que, se vocĂŞ nĂŁo encontra uma maneira de se defender, enlouquece. VocĂŞ acaba ficando anestesiado para essa violĂŞncia. Em um lugar como a SuĂça, que tem uma estrutura social muito equilibrada, muito mais justa que a do Brasil, vocĂŞ nĂŁo vĂŞ pessoas morando na rua. Morrendo de fome. NĂŁo se veem essas cenas que a gente vĂŞ no Brasil, como um caminhĂŁo cheio de ossos e as pessoas se jogando dentro desse caminhĂŁo… Isso Ă© impensável. Essa violĂŞncia tĂŁo acachapante Ă© intolerável. Dentro da realidade do Brasil, vocĂŞ acaba se anestesiando para tolerar o grau de sofrimento. VocĂŞ vĂŞ a multidĂŁo de pessoas que foram jogadas na rua, com fome, que ficam mexendo no lixo pra conseguir comer… Isso fica intolerável quando vocĂŞ salta fora dessa realidade e passa a olhá-la de fora. O ser humano nĂŁo Ă© para morrer de fome. Para ser abatido em experiĂŞncias mĂ©dicas. A razĂŁo da vida Ă© o ser humano conseguir viver plenamente, ter a possibilidade de viver dignamente.• Governo atual
O Brasil ficou mais violento com esse governo. No quesito violĂŞncia contra a mulher, no que diz respeito Ă violĂŞncia domĂ©stica e aos casos de feminicĂdio, houve um aumento de quase 10%. É um aumento considerável. Foi esse Brasil violento, onde há tĂŁo pouca justiça e há tanta impunidade, que acabou elegendo uma figura com esse discurso de “vamos fazer justiça com as prĂłprias mĂŁos”, com esse discurso de intolerância.• Bolsonarismo
Quando escrevi Gog Magog, em 2016-17, era como se percebesse que o brasileiro tinha uma espĂ©cie de grande prazer em ver os linchamentos que aconteciam, por exemplo, no espaço da web. Esses linchamentos morais que começaram a ser muito frequentes na internet. Era como se isso fosse uma forma de vocĂŞ compensar um paĂs onde há tanta impunidade. Como se a ideia de punição fosse uma espĂ©cie de desejo de consumo. Objeto de desejo. A impunidade Ă© tĂŁo grande que, quando vocĂŞ pensa em punição, seja ela com as prĂłprias mĂŁos ou a que acontece na web, ela acaba dando Ă quela pessoa que está cansada de ver violĂŞncia, cansada de ver impunidade, uma sensação de alĂvio. O Bolsonaro funcionou um pouco como isso. Em um paĂs muito violento, o cara vem e fala: “Olha, vamos ser intolerantes? A gente Ă© racista mesmo, Ă© homofĂłbico mesmo”. Como se ele acirrasse essas situações. As pessoas achavam atĂ© engraçado, nĂ©? Ele era meio que um palhaço, com esse discurso despropositado. Foi exatamente essa violĂŞncia do paĂs que fez uma figura como o Bolsonaro — despreparada, misĂłgina, racista, com discurso de violĂŞncia — chegar Ă presidĂŞncia. Ele Ă© esse “vingador”. Tem essa coisa de justiceiro, sabe? Com figuras da milĂcia. A gente sabe que tem ali toda essa cultura da milĂcia, dos matadores de Marielle. É assim.
“É muito difĂcil vocĂŞ entender o Brasil de hoje sem entender a violĂŞncia.”
• Mulheres empilhadas 1
Quando comecei a pensar em fazer o Mulheres empilhadas, tinha um projeto estĂ©tico. Queria que o livro fosse uma ampliação dessa experiĂŞncia que a gente tem fragmentada: vocĂŞ abre o jornal e lĂŞ “mulher Ă© atirada da janela pelo namorado”, “mulher Ă© encontrada queimada dentro do carro; suspeito Ă© o noivo”. Existem essas pĂlulas de feminicĂdio na leitura de jornal, nos momentos que se assiste ao telejornal, na vivĂŞncia, na comunidade, uma amiga que apanhou do namorado. Queria juntar essas notĂcias que estĂŁo todas fragmentadas e fazer uma coisa que fosse como uma punhalada, uma facada. Tinha esse projeto estĂ©tico. Pensava em como iria espetar o leitor. AtĂ© na busca das palavras, queria palavras pontudas. Queria um estilo meio facada.• Mulheres empilhadas 2
Ao mesmo tempo em que ele Ă© um projeto estĂ©tico, Ă© claro que se tornou polĂtico — conforme fui pesquisando e vendo a dimensĂŁo do nosso problema. Quando comecei a escrever o livro, o Brasil tinha 10 mil casos de feminicĂdio estacionados nas diferentes cortes. VocĂŞ começa a ver o drama social, o drama humano, porque quando a gente fala de feminicĂdio, sempre pensa nas vĂtimas, nas mulheres que morreram, nessas mulheres empilhadas. Mas, na hora que vocĂŞ começa a pesquisar, percebe que esse nĂşmero Ă© muito maior, porque cada caso de feminicĂdio tem um nĂşcleo de vĂtimas enorme. SĂŁo gerações de vĂtimas. O nĂşmero de vĂtimas, na Ăłrbita de um feminicĂdio, Ă© enorme. É uma dor que se prolonga por gerações. VocĂŞ começa a ter toda essa informação nas pesquisas, entĂŁo Ă© claro que isso te pega racionalmente, emocionalmente, e se transforma em um projeto polĂtico. Em um ato de resistĂŞncia. NĂŁo quis em nenhum momento ser panfletária, mas quis sim ser polĂtica. Quis berrar um problema na cara das pessoas. NĂŁo sei se consegui, mas minha intenção foi essa.• Tabu
Sinto que as pessoas me confirmam um tabu: “Resisti para ler o livro [Mulheres empilhadas] porque, no fundo, nĂŁo quero falar sobre isso. NĂŁo quero discutir essa temática”. É uma situação meio paradoxal. Tem sempre muito silĂŞncio em volta da morte de uma mulher. Primeiro, ela prĂłpria nĂŁo pode falar sobre a morte dela. Já foi. Depois, a famĂlia nĂŁo quer falar. Porque Ă© um tabu. É, tambĂ©m, um monstro que está dormindo. Falar sobre esse assunto Ă© trazer Ă tona uma dor que vocĂŞ nĂŁo aguenta sentir. Depois, a sociedade nĂŁo fala porque Ă© um assunto desconfortável. Cheio de pontas desagradáveis. Senti, quando publiquei o livro, que mexi aĂ. As pessoas nĂŁo querem falar sobre o assunto, Ă© desagradável. Resolver um problema dessa dimensĂŁo passa, sobretudo, por debater profundamente essa questĂŁo da violĂŞncia contra a mulher.• Certezas iniciais
Só começo um livro quando sei como vai acabar. Sei o começo e sei o fim. Nunca mudei. Pode ser que no futuro aconteça. Em todos os livros que escrevi até agora, a partida e a chegada eu sabia. O resto pode ficar um pouco sem saber, vai se desenvolvendo. Mas esses dois pontos acho importante de o ficcionista dominar, acho que isso dá um norte. No meu caso, pelo menos.• Vingança
No Mulheres empilhadas, tinha a questĂŁo da realidade que eu queria trabalhar. Mas queria, tambĂ©m, que houvesse espaço para a vingança. A vingança nĂŁo poderia ser no plano da realidade, porque achava que, dessa forma, se a protagonista tomasse consciĂŞncia da violĂŞncia e fosse como um matador de saias, como a personagem da Uma Thurman no filme do Tarantino [Kill Bill], aĂ estaria transformando essa mulher em um assassino do mesmo tipo que mata as mulheres. EntĂŁo, queria que a violĂŞncia fosse uma fábula. Quase que um canal para extravasar, uma sublimação dessa violĂŞncia. Desse desejo de vingança. Uma sublimação do desejo de vingança. AĂ, as coisas foram se juntando na pesquisa. Queria que acontecesse no Acre, porque o Acre me dava vários tipos de mulheres: a da floresta, dos povos ribeirinhos, das comunidades indĂgenas, da comunidade rural. Uma coisa foi levando a outra, aĂ consegui criar — buscando nas prĂłprias lendas amazĂ´nicas — uma realidade imaginária de guerreiras vingadoras que saem atrás dos homens que escapam impunes dos tribunais e fazem rituais de canibalismo com eles. Elas se vingam, matam, se divertem muito com os atos. Era uma estrutura que permitia, tambĂ©m, uma espĂ©cie de contrapeso Ă violĂŞncia. Um olhar mais bem-humorado. O contrapeso da realidade. Fiquei muito feliz de conseguir. Foi uma matemática. No começo, estava com muita dificuldade de estruturar o romance. Precisei de uma estrutura tripartida para dar conta de tudo isso.
 “O que acho interessante, na vida do escritor, é justamente a liberdade.”
• Lugar de fala
Lugar de fala significa empobrecer a literatura. A literatura Ă© um espaço de liberdade, nĂŁo pode haver esse tipo de preocupação. O que significa ter lugar de fala na literatura? Que sĂł posso escrever sobre o que vivo? SĂł sobre a minha experiĂŞncia? Isso Ă© de uma pobreza… É como se vocĂŞ colocasse toda sua imaginação numa caixinha. “Tem que ser assim agora, porque tem que ter o lugar de fala. VocĂŞ nĂŁo tem autoridade pra falar isso…” Eu, como ficcionista, tenho autoridade para falar sobre o que quiser. Assim como os crĂticos tĂŞm liberdade para odiar meu livro e achar que fiz muito mal. Que nĂŁo convenço. Que os personagens que escrevi nĂŁo tĂŞm densidade. Mas tenho que ter essa liberdade. Literatura e lugar de fala sĂŁo duas coisas incompatĂveis. NĂŁo dou a menor bola para essa discussĂŁo no âmbito da literatura. NĂŁo gasto nem tempo pensando nisso.• Leitora experiente
Com o tempo, as exigĂŞncias enquanto leitora mudam. Vou fazer 60 anos, nĂŁo tenho mais todo tempo do mundo. Sempre gostei muito de jovens autores, gosto ainda, mas hoje tento correr atrás dos clássicos que ainda nĂŁo li. Neste momento, estou lendo Berlin Alexanderplatz, do Alfred Döblin. É um livro, na minha opiniĂŁo, tĂŁo importante quanto Ulysses, do James Joyce. Ele desestrutura e reinventa o estilo na lĂngua alemĂŁ da mesma maneira que CĂ©line fez no francĂŞs e o Joyce, no inglĂŞs. Hoje, minha preocupação Ă© esta: o que ainda nĂŁo li, que Ă© cânone? NĂŁo quero morrer sem ler essas coisas. NĂŁo quero ir embora sem ter lido esses livros. Há dez anos, ou 20, evidentemente estava muito mais interessada em novidades. Agora, tem uns escritores que nĂŁo consigo deixar de ler nunca. Toda vez que sai um Don DeLillo, leio. Toda vez que sai um Coetzee, leio. Tem autores que acompanho. Na Ă©poca em que o Philip Roth estava vivo, tambĂ©m acompanhava. EntĂŁo tem os escritores que acompanho, os cânones que nĂŁo li e fico indo atrás. Por exemplo, nĂŁo tinha lido Guerra e paz. Fui ler no ano passado. Depois de ler, vocĂŞ diz: “Bom, passar por essa vida sem ler Guerra e paz Ă© sĂł deixar de lado o principal”. Hoje em dia, entĂŁo, minha preocupação tem sido ir atrás desses buracos na minha formação.