A poeta Cida Pedrosa encerrou em dezembro a 10ÂŞ temporada do Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, com patrocĂnio do ItaĂş, por meio da Lei Federal de Incentivo Ă Cultura. Nesta edição, os setes encontros aconteceram online, com transmissĂŁo pelo YouTube, e todo conteĂşdo tambĂ©m está disponĂvel no site do projeto (paiolliterario.com.br).
Cida nasceu em BodocĂł (PE), em 1963. Em 2020, com Solo para vialejo, venceu o PrĂŞmio Jabuti nas categorias Poesia e Livro do Ano. No mesmo ano, foi eleita vereadora do Recife (PE), onde mora, pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Gris (2018), ClaranĂŁ (2015) e As filhas de Lilith (2009) sĂŁo seus outros tĂtulos publicados.
Realizado desde 2006, o Paiol Literário já recebeu 78 escritores. Julián Fuks, MarĂlia Garcia, Paulo Scott, Veronica Stigger, Edyr Augusto, PatrĂcia Melo e Cida Pedrosa sĂŁo os sete escritores e poetas que participaram da edição 2021 do projeto.
• Literatura é o caminho
Tenho um sentimento de que se as pessoas fossem alfabetizadas com poesia, elas poderiam ter acesso crĂtico a qualquer texto cientĂfico ou teĂłrico. A literatura Ă© o caminho para vocĂŞ conseguir subjetivar, entender para alĂ©m do que está escrito nas linhas expressas. Para vocĂŞ ter novas formas de pensar. A literatura talvez seja o melhor caminho de formar cidadĂŁos e cidadĂŁs crĂticos e crĂticas. VocĂŞ poder aferir conteĂşdo a partir do seu olhar, e nĂŁo do olhar do outro. De conseguir atravessar para alĂ©m do texto. A literatura — alĂ©m de ser um momento de deleite, alĂ©m de ser um processo de nos aproximar do humano, porque acho que literatura nos dá humanidade — tem esse papel importante de formar pensamento crĂtico e fazer a luta de ideias.
• Alfabetizar com poesia
Sou mãe de dois meninos. Eu lia para eles poesia infantil, historinhas infantis que usavam rimas, sons, aliterações. O som ajuda a compreender o texto quando se é pequeno. O som te aproxima da palavra e do objeto que ela significa. O som traz cheiro, textura. O som traz uma intersemiose linda, para que a gente consiga adentrar na leitura e gostar do texto. É isso que quero dizer com alfabetizar com poesia.
• Metodologia freiriana
NĂłs temos essa coisa do analfabetismo funcional, de pessoas que sabem escrever o nome, votam, atĂ© tĂŞm conta bancária, mas nĂŁo conseguem interpretar texto. Coloco uma pitada que, para mim, Ă© muito forte: como a gente alfabetiza as pessoas? É uma coisa freiriana. VocĂŞ alfabetiza uma menina da comunidade com o que Ă© prĂłximo dela. O que Ă© que está na comunidade prĂłxima? É o brega, o funk, o rap. Se vocĂŞ traz para a leitura aquilo que Ă© prazeroso, aquilo que está prĂłximo dessa identidade, acredito que sempre funciona bem. Ă€ noite, no sĂtio onde nasci, tinha uma turma antigo Mobral. Era Ă©poca da ditadura, eu tinha 7 para 8 anos, e minha irmĂŁ alfabetizava os trabalhadores e trabalhadoras. Lembro atĂ© hoje que eles usavam uma cartilha freiriana, com a palavra tijolo, semente, agricultura. Ou seja, com palavras que eram muito prĂłximas das vidas dessas pessoas. Falei o exemplo da comunidade urbana, mas como Ă© que chega no menino rural, do MST? Falando nisso, inclusive, nos acampamentos do MST o nĂvel de analfabetismo Ă© minĂşsculo, porque eles estudam, alfabetizam, trabalham a leitura. A gente tem que aproximar a leitura da realidade das pessoas.
• Expressões populares
Acredito, defendo e tenho provas da potĂŞncia da poesia. Fiz e faço muita roda de leitura em comunidade. Essa histĂłria de que as pessoas nĂŁo gostam de poesia nĂŁo Ă© verdade. Quando vocĂŞ oraliza, quando diz textos prĂłximos da realidade, quando vocĂŞ sai do pedestal — por que Ă© que um poeta popular, antes de dizer o seu verso, conta uma histĂłria? Igualzinho BashĂ´ fazia. O haikai, inclusive, era a poesia popular oriental como Ă© poesia popular nosso cordel e cantoria. O BashĂ´ justificava seu haikai. Ele escrevia Ă s vezes oito ou dez linhas para dizer o que significavam as trĂŞs do poema. O que ele tinha observado, o que ele tinha sentido, do que se tratava. SĂł que aĂ chega num momento que a intelectualidade diz: “Poesia nĂŁo se explica”. E nĂŁo se explica mesmo, nĂŁo. Mas vocĂŞ dialoga com ela para com as pessoas. O poeta popular, antes de dizer um poema, explica: “Vou dizer um poema. Mas eu estava em tal canto, me surgiu isso. Aconteceu isso”. É muito comum. Nunca começa já dizendo o poema. Ao fazer isso, contextualiza, e aquela pessoa simples que está ouvindo entra na narrativa. Quando a poesia chega, ela recebe com naturalidade. Acredito nisso. Claro que existem poemas mais acessĂveis, outros nĂŁo. Mas acho que, se vocĂŞ pegar o Viva vaia [de Augusto de Campos], contextualizar e ler em conjunto, fazer uma roda de oralização da poesia, vocĂŞ cria um outro contexto para isso.
• Gibis
Tive uma sorte danada. No colégio municipal onde estudei o ginásio, e também no grupo escolar, havia bibliotecas — uma mais miudinha e outra mais robusta. Tenho uma irmã amada, a Flor Pedrosa, que foi minha professora já no ensino médio. Ela foi estudar em Recife, uma das primeiras moças da minha cidade [Bodocó] a sair para estudar. Sem ser em colégio de freira. Estudava Letras, sempre amou literatura. Ela comprava caixas de livros e me mandava, então tive acesso a gibis quando ainda não eram vendidos em Bodocó. Aqueles manuais da Disney, das bruxas. Isso era maravilhoso, porque eu tinha contato com a literatura infantil para além do que estava na biblioteca.
“Fico sonhando com nossas escolas abarrotadas de escritores das mais diversas matizes.”
• Leitora voraz
Sempre fui uma leitura muito voraz. Mamãe dizia, quando eu tinha uns 10 anos: “Minha filha. Se eu conhecesse essa palavra psicólogo, tinha levado você. Achava que você ia endoidar”. Era porque eu lia muito. Nas férias, pegava 20 livros e lia. Se me perguntassem o que eu fazia, respondia: “Carrego rede nas costas”. Porque ficava deitada na rede lendo. O dia inteiro. Ler, para mim, é fundamental demais. Morro de medo de ficar cega.
• Diversão e mergulho
Sempre li por prazer, para me divertir, como gosto ainda — leio muitos quadrinhos até hoje. Meu companheiro coleciona, então aqui em casa parece um mar de quadrinhos. Quando lia gibi, era para me divertir. Gibi era a leitura da diversão. Os romances da menina moça, que só podia ler coisas bem água com açúcar, foi a entrada no drama. Nas brigas humanas. Nas angústias. E mais essa coisa de viajar, li muito Júlio Verne. Quase tudo. Viajar para além da Serra do Araripe, em Bodocó, sempre foi fantástico. Como você saber qual é o barulho do mar ou o cheiro do mar, saber o tamanho do mar, se você só viu uma fotografia? Quando li Mar morto, do Jorge Amado, entendi. Ele descrevia com tanta precisão a entrada do pescador no mar, como é que as ondas iam, que me senti lá pescando. Tem essa coisa de ir para mundos que não são os teus.
• Turma literária
Vim para Recife para estudar. Tinha uma loucura para vim para cá, porque achava que precisava ampliar meu mundo. NĂŁo era para ter chegado aos 14 anos. Vim para o casamento de uma irmĂŁ, de forma muito determinada (como sempre fui), enchi a mala de coisas e cheguei. “MamĂŁe, vou ficar.” Ela nĂŁo queria. Terminei ficando, porque meu irmĂŁo disse: “Deixa essa maluca aĂ, que cuido dela”. Fiquei. Todas as pessoas que vinham da minha famĂlia tinham 17 ou 18 anos. Quando cheguei, dei de cara — na escola — com uma colegagem que escrevia e lia. Muito. O Raimundo de Moraes, Wilson Freire, Eduardo Martins, Cicero Belmar. Uma turma premiada hoje. Eu, que já escrevia coisas muito ruins, comecei a mostrar. Começamos a produzir textos juntos — um fazia uma frase, outro fazia outra. É uma coisa que sinto falta, a escrita coletiva. Na pandemia, algumas pessoas passaram a fazer isso na internet, atĂ© romances coletivos rolaram. NĂłs fazĂamos isso lá, um poema a oito ou dez mĂŁos. Como era bom isso de vocĂŞ ver o verso bom do outro e o seu ruim. VocĂŞ compara, aprende.
• Leituras de juventude
Era uma oficina muito intuitiva que a gente tinha. Isso que se faz hoje de forma pensada, sistêmica, era muito intuitivo. Mas muito natural, também, por ter no mesmo espaço de tempo tanta gente que escrevia. Tinha uma professora, minha irmã, que nos adotava literariamente. Era maluco porque botava menino de 14 anos para ler O estrangeiro, do Camus. Muito doida, né? A gente é muito grato a ela por isso. Apresentava a gente a Augusto, Haroldo e Décio. Valendo mesmo. De sentar e “vamos lá, o quê que vocês entendem disso?”. E instigar. Você emburaca noutros mundos. Hoje em dia, um professor de literatura não apresenta o Poema sujo para um menino de 14 anos, apresenta? Só mais tarde, lá por 17, 18 anos. Ela mandou a gente ler com 14, 15 anos. Foi muito bom. Maravilhoso.
• Poesia concreta
Quando escrevo, sou muito todos os sentidos. Essa coisa de sinestesia. Essa coisa de som, imagem, cheiro. A gente acha que poesia concreta se distancia disso, mas muito pelo contrário. Aquela poesia imagética é para ser comida viva. Ou você ingere, entra nela de cabeça, ou não consegue nem sacar. Nem se sensibilizar.
• Estreia e decisão
NĂŁo tinha essa coisa de achar “vou ser uma poeta assim, assado” [na Ă©poca que lançou o primeiro livro, Restos do fim, aos 19 anos]. Meu filho, Francisco, tem um plano. Escreve muito bem, o danado. Escreve um livro, põe no concurso, fica entre os 20, 10 colocados. Eu nĂŁo tinha. Gostava de escrever, queria escrever, lancei meu livro. Dizia poesia na rua. Mas nĂŁo tinha clareza de aonde ia chegar. Tanto que passei quatro anos para escrever o outro livrinho, O cavaleiro da epifania (1986), depois do qual disse: “Quero ser poeta”. NĂŁo sabia se ia conseguir, porque ouço muito, tenho muito senso crĂtico. Quando lanço coisa ruim, sei que estou lançando coisa ruim. Publico de safadeza.
• Evolução
Sempre fui crĂtica com minha poesia. Agora, o problema Ă© que antes era crĂtica e tinha safadeza de publicar o que era ruim: “Ah, vou publicar”. Hoje, nĂŁo publico se nĂŁo tiver certeza. Publiquei Lilith, ClaranĂŁ, Gris e Solo para vialejo para nĂŁo me arrepender. Já os outros… Mas, d’O cavaleiro, assino todos os 27 poemas. Todos tĂŞm valor.
• Estilos diversos
Tenho uma mania muito péssima de dar guinadas de um livro para outro, fazer coisas diferentes. Não consigo ficar no mesmo jeito. Tenho necessidade de aprender com a palavra. O cavaleiro da epifania é um livro todo mais formal, meu primeiro tem uns poemas mais curtinhos. Bebia muito no experimentalismo, ali na poesia marginal da década de 1970, umas brincadeiras visuais. O segundo já tem algumas redondilhas maior, uma coisa — não digo “culta”, não, porque isso é muito babaca — mais formal mesmo. Fui me aprendendo. Fui me entendendo. Meu terceiro livro é muito ruim. Tem uma parte dos poemas curtos que é boa, mas tem uma melequeira ali, umas baboseiras, que não se publica. Fui aprendendo e tendo coragem de levar tapa na cara.
“O ruim de Drummond é o bom que um monte de gente amaria escrever.”
• Drummond
Estou relendo Drummond desde o primeiro livro. Tinha lido Alguma poesia muito jovem, com 16 anos, depois sĂł li os poemas emblemáticos. VocĂŞ relĂŞ aquilo que Ă© emblema, nĂŁo lĂŞ o lado B. Fica tendo contato com aquilo que a mĂdia coloca. Estou na Rosa do povo, o quarto. Como está sendo bom, aos 58 anos de idade, ler o livro que Drummond fez aos 27. Para vocĂŞ compreender que mesmo nele tem as curvas. Tem os ápices no livro e aquilo que nĂŁo Ă© tĂŁo bom. O ruim de Drummond Ă© o bom que um monte de gente amaria escrever. E tambĂ©m tem o contexto da Ă©poca: hoje, vocĂŞ escrever um poema daquele que Drummond escreveu Ă© muito comum. Mas escrever em 1930, 35, 40, aquilo era o nota 10. Tem essa coisa do espĂrito do tempo. Quando o poema Ă© bom, ultrapassa o espĂrito do tempo.
• Outras releituras
Tenho relido muito. E estou com intenções de reler umas coisas que, para mim, são importantes. Ano passado, no primeiro ano da pandemia, reli Adélia Prado do primeiro até o último livro. Um a um. Adoro. Está na minha mesa de cabeceira. Quero reler Augusto e Haroldo, tenho a antologia. No ano anterior, li tudinho que tem do Maiakóvski no Brasil. Tenho feito esses movimentos.
• Miles e Dylan
Da mesma forma, escuto muito rock da dĂ©cada de 1960 e 70. Escuto muito blues. O povo nĂŁo entende por que eu nĂŁo conhecia, nĂŁo sabia quem era MarĂlia Mendonça (1995-2021). Fiquei triste porque uma mĂŁe de famĂlia morreu. Porque uma moça jovem morreu. Mas nĂŁo conhecia nada dela. NĂŁo vejo TV. SĂł ligo TV para ver filme. Ă€s vezes vejo um pouquinho de jornal, mas vejo mais na internet. Ouço as mesmas coisas, ouço blues. Ouço Miles Davis cem vezes no ano. Ouço Bob Dylan toda vez que entro no carro. Pode parecer chato para algumas pessoas, mas Ă© o que me comove. E Ă© o que gosto de fazer.
• Fulgor da juventude
Para além disso, quero dizer que recebo muito livro. Entro muito em contato com a poesia jovem, conheço muito o que se produz aqui, da juventude, porque adoro gente nova. Adoro esse fulgor, esse tesão, essa vontade. Isso me contagia. A inveja que tenho de ser professora é disso. Quando você está no meio da juventude, pô, a turma tá num tesão, sabe? Numa vontade. Isso me contagia. Isso não lhe deixa se sentir o velhinho da parada. O vovô do INSS. A vovó do INSS.
• Dois movimentos
Tenho esses dois movimentos. O de reler coisas que li no passado, muito jovem — quero voltar ao Ulysses. Preciso ler essas coisas de novo. E, ao mesmo tempo, fazer esse movimento com os jovens. Agora, leio muito mais poesia e conto do que prosa. Li tardiamente Torto arado, mês passado. Estou em estado de afeto com o livro.
• Oralidade
A poesia oral Ă© muito importante para mim. Ouço muito cordelista cantar, as rezas, e isso desde pequena. Como isso Ă© forte na minha formação. E como mantenho isso em Recife, quando chego aqui. Embora meu primeiro livro, do ponto de vista escrito, seja um afastamento completo dessa poesia na forma, meu exercĂcio de cidadania literária se dá pela oralidade. Num movimento de escritores independentes, fazia rodas de saraus, recitava na rua o tempo inteiro. AĂ, aprendi uma coisa: toda vez que escrevo um texto, leio para mim mesma. Leio muito pra mim. Se ele engasga, mudo a palavra. Se engancha, a palavra nĂŁo está no lugar exato. Mudo. Porque mesmo um livro que a gente possa pensar que nĂŁo Ă© para ser dito em voz alta, ele Ă©. Todo mundo diz que o velho bruxo Cabral nĂŁo tem musicalidade, ele tem uma musicalidade incrĂvel. Ele, igual ao MaiakĂłvski, que Ă© outro poeta de musicalidade fenomenal — inclusive se parecem, porque fazem uma musicalidade intrĂnseca ao poema; nĂŁo Ă© aquela coisa de rima na Ăşltima palavra do verso, Ă© interno. Eles tĂŞm uma musicalidade interna no poema que se assemelham muito. Como dizer se o poeta Ă© bom? VocĂŞ lĂŞ e depois recita para si mesmo. Ă€s vezes as pessoas pensam que estou doida. Quando lia nos Ă´nibus, lia o poema e dali a pouco estava lendo em voz alta. Sempre entendo de várias formas — pelo olho, pela leitura. Minha relação com a poesia Ă© muito sinestĂ©sica. A oralidade, para mim, Ă© fundamental.
• Chegar ao povo
Amo demais o Ferreira Gullar, mas os cordĂ©is dele sĂŁo um horror. E foi quando ele escreveu para se aproximar do povo, no momento que estava fazendo exercĂcio comunista. NĂŁo precisava disso. Podia chegar perto do povo lendo a poesia dele e fazendo a justificativa de BashĂ´. Fazendo a justificava dos poetas populares. Ele nĂŁo precisava ter entrado, embora venha de um lugar [MaranhĂŁo] onde o cordel Ă© forte. Tenho certeza que, de onde ele vem, deve ter ouvido cantoria, ficado prĂłximo do poeta popular. Eu nĂŁo queria fazer aquilo que Ferreira fez e que Ă© ruim, o cordel dele. Tanto que, quando vou usar mĂ©trica no ClaranĂŁ, uso meus conteĂşdos me distanciando dessa histĂłria do panfleto. Me inspiro nos grandes lĂricos da poesia popular. É tanto que faço glosas desses poetas. Do Louro do PajeĂş, OtacĂlio Batista, Pinto do Monteiro. Pego versos dos papas da poesia popular e gloso. Inclusive para nĂŁo deixar nem a possibilidade de eu enveredar para aquilo que, Ă s vezes, as pessoas fazem no cordel. O cordel, para a educação, Ă© Ăłtimo. Como valor literário, Ă© outra coisa. Porque vocĂŞ tem a poesia popular e tem a frágil. NĂŁo dá para misturar as duas coisas. EntĂŁo, olhava o exemplo de Ferreira: “NĂŁo posso cair nesse conto do vigário”. Tenho que cair no conto do Poema sujo, que Ă© o melhor do mundo.
• Cargo público e literatura
NĂŁo concilio [cargo pĂşblico com literatura], me lasco todinha. Veja: fui secretária do meio ambiente e a gente deixou um legado lindĂssimo nessa cidade. Um legado. A legislação de sustentabilidade do Recife Ă© exemplo para o Brasil todo. Me matava de trabalhar. Por que o Solo para vialejo demorou cinco anos para sair? Porque eu produzia nas brechas do meu tempo, que sĂŁo em feriados mais longos… Faz mais de anos que nĂŁo tiro 30 dias de fĂ©rias, esse ano vou tirar. Tiro 15, 10, e esses dias me dedico a quĂŞ? Escrever. Isso Ă© muito injusto.
• Dedicação
Quando pego um cargo desse, dou o que nĂŁo tenho de fĂsico e emoção. É sempre assim, a vontade de fazer. Aprendi uma coisa: acredito que felicidade Ă© um projeto coletivo. É de uma subjetividade enorme, nĂŁo acredito em felicidade, mas como Ă© diacho que tu vai ter harmonia se tu desse do teu prĂ©dio e há um monte de famĂlia morrendo de fome? Se vocĂŞ Ă© sensĂvel, bicho, isso Ă© impossĂvel. Para nĂŁo endoidar e dar um tiro na cabeça, resolvi agir. O que me moveu para isso foi sobreviver. Quando faço alguma coisa, me sinto em movimento. Ao me sentir em movimento, me sinto instrumento de mudança. Ao me sentir instrumento de mudança, tenho fĂ©, esperança, de que algum dia isso vai melhorar.
“A gente tem que aproximar a leitura da realidade das pessoas.”
• Aprender a conciliar
Tenho que conseguir pôr a literatura no meu dia a dia. Como todo mundo faz. “Vou escrever quarta de manhã e quinta de manhã.” Passei esse ano tentando, não consegui. Mas estou com fé. Faço terapia há 20 anos. Levei cacete na terapia. A terapeuta vai desistir de mim. Ou eu organizo isso, ou não terei mais terapeuta. Tenho que conseguir conciliar. Estou com três livros em aberto. Um deles, de contos, está há oito anos em aberto. Tenho que terminar esse negócio. Preciso aprender a conciliar, mas não é fácil. Tenho mania de perfeição.
• Utopias 1
É bem mais difĂcil ser humanista no Brasil hoje. Primeiro, acho que tem uma letargia. EstĂŁo nos faltando utopias. Como os jovens estĂŁo carentes de boas utopias! Utopia Ă© algo que move — seja cultural, social, atĂ© de uma fĂ© progressista. A utopia move montanhas. Sinto uma letargia. Muita gente deprimida. A depressĂŁo Ă© uma doença do sĂ©culo 21. Tomo muito conta de mim por causa disso. Se vocĂŞ Ă© sensĂvel, Ă© muito fácil cair em depressĂŁo em tempos tĂŁo complexos. Esse indivĂduo já está triste, aĂ tem uma sociedade de consumo que lhe oprime pra caramba. NĂłs temos uma geração fragilĂssima.
• Utopias 2
Tenho dois filhos. É uma geração fragilĂssima, que foi jogada nesse centro absurdo do consumo. E que nĂŁo tem como correr, porque está na escola, no parquinho do prĂ©dio. VocĂŞ nĂŁo consegue criar bicho-grilo, nĂŁo tem como. VocĂŞ cria dentro desse mundĂŁo que menina gosta de Barbie, que meninos querem carrinhos Hot Wheels. E querem fazer coleção. Isso Ă© um mundo de angĂşstias. Perdeu-se o lĂşdico, a beleza, a delicadeza, a natureza — e isso nĂŁo Ă© coisa de bicho-grilo, nĂŁo. A natureza, o contemplar. A natureza nos deixa prĂłximos de nĂłs mesmos. Faz a gente interagir para dentro. E esse mundĂŁo faz perder a possibilidade de ficar sĂł. VocĂŞ está sempre rodeado de coisas. Isso te deixa triste, porque quando nĂŁo se está rodeado de coisas faz o quĂŞ? VocĂŞ nunca se viu. É complexo. NĂŁo Ă© coisa de velhinha comunista. Estou muito preocupada com a meninada. Onde estĂŁo as utopias, para a gente poder se irmanar coletivamente? Fico preocupada com isso.
• Utopias 3
Estou com uma clareza cada vez mais forte: a literatura tambĂ©m pode ser ativismo. Acho que Ă© possĂvel chegar junto das pessoas atravĂ©s do texto escrito, da oralidade. Fico sonhando com nossas escolas abarrotadas de escritores das mais diversas matizes que pudessem se entregar a um processo de letramento real. A arte tem uma capacidade de transformação e de aglutinação enormes. A periferia Ă© latente nisso. O rap, os slams. É impressionante. Os movimentos do hip-hop. Como isso Ă© potente. Esta Ă© minha utopia.
• Movimento de Cultura Popular
Tem uma coisa que aconteceu em Pernambuco chamada MCP e que teve alguns foguinhos no Brasil. O MCP foi um movimento de cultura popular, no governo Arraes, que envolveu Ariano Suassuna, JosuĂ© de Castro, Abelardo da Hora, um dos grandes escultores do Brasil, o Paulo Freire — que arengou porque a turma queria fazer uma cartilha. Ele saiu do MCP porque disse que o que ele queria fazer nĂŁo cabia numa cartilha, depois fez uma cartilha. Como aquilo foi incrĂvel. Como atĂ© hoje encontro gente que diz que se formou como artista no MCP, aprendeu a ler, formou-se politicamente. Fiz uma live há dois meses com a Silke Weber, uma das Ăşnicas do MCP que ainda está viva. Ela foi secretária de educação no segundo governo Arraes. Quando ela foi para o cargo, todo mundo achava que ela ia criar um novo MCP. Ela disse, na live: “NĂŁo existe um novo MCP, porque aquele era realidade daquela Ă©poca. A gente tem que encontrar a nossa utopia de hoje”.
• Desmonte cultural
O desmonte da cultura e da educação começa no governo Temer, que botou o Mendonça Filho como ministro da Educação. Um homem que não é dessa área. Nem os governos de direita anteriores ousavam fazer isso. Você podia ter um foco até mais conservador, mas tinha pessoas do ramo, que entendiam disso. Que tinham um projeto, mesmo que não fosse um que você defendia. O problema é que não temos projeto nenhum hoje, a não ser o de desmonte da educação brasileira. Estamos vivendo um momento de desmonte de uma construção que tem 40 anos. A construção de uma educação democrática. A educação tem toda uma história autoritária, no Brasil e no mundo. Das crianças errarem na escola e ajoelharem no milho. Da palmatória. Isso não está muito distante. Há 40, 50 anos, lá para os lados de Bodocó, ainda davam palmatória nos meninos que eram indisciplinados na escola. Não estamos distantes da palmatória.
• Lei da mordaça
Estávamos num processo, com toda dificuldade que Ă© construir um sistema de educação democrático, com formação de professores melhores. E aĂ, o quĂŞ que acontece? Primeiro, uma lei da mordaça. Os professores estĂŁo sujeitos a serem denunciados a qualquer instante, numa imparcialidade que nĂŁo existe. Na verdade, isso Ă© fascismo. Temos o desmonte de um MinistĂ©rio da Cultura, que já Ă© uma Secretaria de Cultura — com um secretário [Mário Frias] que, alĂ©m de estar envolvido em todas as denĂşncias de corrupção, nĂŁo sabe nada. Como Ă© que vocĂŞ pode ter na Fundação Palmares um homem negro [SĂ©rgio Camargo] que quis desmontar o acervo? O acervo mĂnimo da histĂłria da negritude desse paĂs, que já Ă© tĂŁo precária, uma histĂłria nĂŁo contada. Já Ă© uma histĂłria completamente nĂŁo contada.
“Não temos projeto nenhum hoje, a não ser o de desmonte da educação brasileira.”
• Retrocesso
Bem triste isso. NĂłs andamos 40, 50 anos para trás. Estou muito aflita para derrubarmos o Bolsonaro, mas reconstruir o Brasil Ă© uma questĂŁo de paciĂŞncia. Está havendo um desmonte muito grande. Mais complexo do que derrotar o Bolsonaro Ă© derrotar o bolsonarismo, porque 27% da população acredita nisso. Como fazer a luta de ideias no que diz respeito ao negacionismo, Ă falta de ciĂŞncia, e a uma elite que acredita que pobre nĂŁo pode comer camarĂŁo? Que acredita piamente que pobre nĂŁo tem que andar no elevador principal nem no aviĂŁo? É um paĂs, estruturalmente racista, que permite que um negro seja arrastado numa moto por um policial. O racismo estrutural Ă© tĂŁo grande que ele acha que pode reproduzir a cena que acontecia antes da abolição, que era amarrar um homem escravizado a um jumento e arrastá-lo. É a mesma coisa, no sĂ©culo 21.
• Ler e militar 1
Sou uma velha comunista. A gente está precisando da utopia, mas também é um momento de estudar muito. Isso faz parte da utopia. Tenho lido coisas que me agradam. O Jessé [Souza] aponta caminhos. O João [Cezar de Castro Rocha], no Guerra cultural e retórica do ódio, aponta caminhos. Minha mãe dizia: “Orar e vigiar”. Eu digo: “Ler e militar”. Se não é tua praia ir para a passeata, se engajar num movimento, mas tu é progressista, tu tem a capacidade de estudar. É um momento de refletir, de publicar. De entender o que está acontecendo. Apontar caminhos. Essa também é uma grande trincheira de luta.
• Ler e militar 2
A história intelectual do Brasil começa, de um ponto de vista de pensamento nacional, com Sérgio Buarque, Darcy [Ribeiro], Gilbero Freyre — tem que refazer a leitura deles, porque eles têm essa coisa do mito da democracia racial. A partir deles, começou-se a pensar uma cultura. Uma identidade nacional. Acho que para a juventude que não quer, não pode, não é a dela ir para a militância, a militância passa a ser se dedicar a estudar, entender, publicar, debater. Nossa moçada tem que ler Sérgio Buarque [de Holanda] de novo. Tem que pegar alguns dos nossos teóricos. E ler alguns novos, que estão — no meu entender — complementando e descolonizando algumas coisas. Tem que ler Jessé Souza, tem que ler A ralé do Brasil. A gente está precisando tentar entender isso tudo que está acontecendo, para tentar encontrar caminhos.
• Comunista de sacristia
O Paulo Freire Ă© respeitado atĂ© lá em Tio Sam. Tem escolas nos Estados Unidos que utilizam o mĂ©todo Paulo Freire. Ele Ă© doutor honoris causa, inclusive, em algumas universidades de lá. Como Ă© que diacho vocĂŞ tem uma tentativa de negar esse legado? Isso Ă© muito complicado, porque está ligado ao fundamentalismo religioso. Os negacionistas e fascistas se juntam aqui, em terras brasileiras, como a turma do conservadorismo e do fundamentalismo religioso. A gente tem que passar a entender. Vou muito Ă periferia. Quando vocĂŞ vai na periferia, tem uma igreja evangĂ©lica, uma pentecostal, em todo canto. Ă€s vezes, cinco ou seis. Aquela mĂŁe que está com um filho usando drogas, que está desempregada, chega lá e consegue cesta básica, recebe iluminação de vila. A igreja catĂłlica, os ateus praticantes, tĂŞm que ir para a luta de ideias nesses espaços. Quando falo da igreja catĂłlica, me refiro Ă progressista — que foi desmontada pelo Papa JoĂŁo Paulo II. Todo mundo achou lindo. Ele foi o desmontador da teoria da libertação e o povo mistifica essa criatura, um homem de direita que desmontou toda uma construção na AmĂ©rica Latina. AĂ Ă© que tá, ele era midiático. Viajava. Falava nĂŁo sei quantas lĂnguas. A partir dele que começou a surgir esses padres cantores que juntam multidões. NĂŁo estou falando disso, nĂŁo. Vá juntar multidões pra cantar, tudo certo. Estou dizendo do meu lugar, tenho formação catĂłlica grande. Digo que sou comunista de sacristia, porque minha formação vem daĂ.
• Brasileiro cordial
Esse mito do brasileiro cordial já está desmistificado há muito tempo. Do ponto de vista intelectual. Mas, do ponto de vista do senso comum, nĂŁo: “NĂłs nĂŁo somos racistas. Aqui, negro casa com branca”. Como se isso bastasse para nĂŁo se ter um paĂs racista. Na verdade, a prĂłpria formação do Brasil se confunde com a formação do capitalismo, do patriarcado. Tudo ao mesmo tempo. NĂŁo tem como discutir a questĂŁo de raça e a questĂŁo de gĂŞnero, no Brasil ou no mundo, sem ser dentro de uma teoria de interseccionalidade. Classe, raça e gĂŞnero sĂŁo coisas ligadas. Quando vocĂŞ vai para os percentuais, quem Ă© que está passando fome? Tem branco? Tem. Mas 75% sĂŁo pessoas negras. Esse apartheid Ă© real. Quando vocĂŞ estratifica isso, percebe quem está embaixo da pirâmide. A gente meio que botou debaixo do tapete, para ter convivĂŞncia, o tiozĂŁo bolsonarista. “Ah, ele Ă© tiozĂŁo.” NĂŁo Ă© isso, nĂŁo. Ele pensa isso. Pensa assim. É machista. MisĂłgino. Racista. Se vocĂŞ me perguntasse “tu acha isso bom ou ruim?”, diria que acho que Ă© melhor lutar com o inimigo Ă s claras.
• Acordar para Jesus
A turma da literatura está acordando para Jesus. É o seguinte. Eu e trĂŞs mulheres amadas tĂnhamos um grupo de recitação feminista. A gente sĂł recitava mulheres, isso tem uns 15 anos. NĂŁo canso das vezes que ouvi poetas famosas do nosso cĂrculo dizendo que nunca sofreram machismo. Como nĂŁo, minha filha? Como sou feminista desde criancinha, sei que sofreu. SĂł que a pessoa nĂŁo se apercebia. Há 12 anos nĂłs fizemos uma mostra contemporânea de literatura de mulheres, eu como curadora do Sesc. Tu nĂŁo tem ideia do fiasco que foi. A imprensa nĂŁo quis dar espaço, pouca gente foi. As pessoas que a gente convidava diziam: “NĂŁo acho que tem que ter essa segregação, nĂŁo”. NĂŁo Ă© segregação. Na verdade, vocĂŞ quer fazer um recorte. AĂ, depois do Mulherio das Letras, depois de algumas mulheres se posicionarem publicamente, o pessoal se tocou que as mulheres tĂŞm que discutir, do ponto de vista sociolĂłgico, sua participação na literatura. Mais e mais escritores tĂŞm ido a pĂşblico se contrapor ao fascismo, etc. Quando digo que acordaram para Jesus Ă© porque a turma estava enxergando polĂtica como lugar menor, como “nĂŁo vou me misturar com isso”. PolĂtica Ă© o lugar onde se dá a decisĂŁo da vida das pessoas. E a literatura e a arte nĂŁo podem estar apartadas disso.
• Luta de ideias
Essa histĂłria de “sou apolĂtico” me dá agonia, desespero. Homem, se tu Ă© um escritor de direita, tu vai lá e diz que Ă© um escritor de direita, um escritor conservador. A gente tem dificuldade de pensar Nelson Rodrigues como um homem conservador, nĂŁo tem? Ele era. E assumia isso. Se vocĂŞ Ă© um escritor conservador, vai lá e assume. E vamos fazer a luta de ideias. Mas, por exemplo, quando a gente tem o Itamar Vieira Junior como o cara mais badalado da literatura hoje no Brasil, isso Ă© lindo. E isso Ă© um recado. O livro Torto arado já nasceu clássico. É um grande recado. Um escritor preto escreve aquela obra, com aquela potĂŞncia, Ă© a prova de que tem lugar para essa literatura no Brasil. E para essas discussões. É impossĂvel ele ir num lugar e nĂŁo falar sobre isso. Ele está falando sobre o quĂŞ? PolĂtica. RaĂzes do Brasil.
• Literatura Ă© polĂtica
Para mim, sempre. Mesmo aquela obra experimental, que nĂŁo quer se alinhar a nenhum pensamento de nada. Uma obra experimental, o conteĂşdo para dentro de si, de si para dentro do conteĂşdo. Isso Ă© um ato polĂtico, porque Ă© uma escolha. Quando leio os irmĂŁos Campos, aquilo Ă© polĂtica pura. De conteĂşdo, inclusive, porque eles eram muito bons de conteĂşdo polĂtico, embora neguem.
• Vozes de Pernambuco
Vou falar da minha aldeia para o Brasil. Sou muito animada com a literatura brasileira. Vou pegar exemplos de prosa e poesia, aqui do meu estado. Quando vocĂŞ pega Sidney Rocha, Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Brito e Mário Rodrigues. A prosa desses quatro Ă© de uma potĂŞncia. E eles sĂŁo nossos contemporâneos. SĂŁo estilos diversos, nĂ©? Bem diversos, os quatro. PotentĂssimos. Agora, pegando a poesia da minha aldeia. A nossa Jussara Salazar, ela tem uma poesia muito feminista, todos os livros de Jussara tĂŞm uma linha especĂfica. Ela parte de pesquisas, parte de reflexões especĂficas. Tem uma poesia que nĂŁo Ă© de fácil entendimento, mais hermĂ©tica. Adoro. Tem gente que nĂŁo gosta. VocĂŞ pega a Micheliny Verunschk — estou pegando pessoas da minha aldeia que nem estĂŁo morando aqui, mas sĂŁo do lado de cá. Pega a Luna Vitrolira, uma explosĂŁo. E aĂ pega uma jovenzinha, que precisa ser pesquisada: a rapper Bione, de 18 anos. A potĂŞncia, do ponto de vista da oralidade do rap, Ă© uma coisa assim de uma explosĂŁo. SĂŁo pessoas bem diversas. Pega a Bell PuĂŁ, que ficou finalista comigo no Jabuti. Tenho muita fĂ© nessa literatura. AtĂ© porque existe uma vontade de escrever sem amarras dos jovens. Eles estĂŁo tentando inventar coisas novas.