* O autor escreve segundo o acordo ortogrĆ”fico e a norma angolana da lĆngua portuguesa, em formação.
O Brasil Ć© um paĆs ao qual me sinto ligado por razƵes pessoais e afetivas, que tĆŖm certamente a ver com a história: cerca de 80% dos africanos transportados como escravos para o maior paĆs latino-americano eram provenientes dos territórios que hoje constituem Angola, o meu paĆs. Desde a minha adolescĆŖncia acompanho a realidade brasileira, em especial a literatura, a mĆŗsica e a cultura em geral, o futebol e a polĆtica. Uma das questƵes brasileiras que cedo atraĆram a minha questĆ£o foram e sĆ£o as relaƧƵes raciais no paĆs.
Lembro-me que, em conversas com alguns amigos do Movimento Negro, no primeiro ano em que se assinalou o Dia da ConsciĆŖncia Negra (na Ć©poca eu residia no Rio de Janeiro, como correspondente da agĆŖncia angolana de notĆcias), eu defendi que essa data deveria ser chamada, de facto, Dia da ConsciĆŖncia Nacional. Ć que, na minha opiniĆ£o, o racismo (antinegro) Ć© a questĆ£o nacional brasileira. Enquanto a sociedade brasileira nĆ£o a resolver, o paĆs nĆ£o se hĆ” de transformar na potĆŖncia, pelo menos regional, que tem tudo para ser.
As polĆticas pĆŗblicas adotadas pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), após o presidente Lula ter assumido a presidĆŖncia pela primeira vez, comeƧaram de facto e indesmentivelmente a mudar a realidade de discriminação e profunda segregação estrutural a que os brasileiros negros (mais escuros ou mais claros) continuam sujeitos ainda hoje. Apenas para dar um exemplo, a polĆtica de cotas raciais mudou substancialmente a realidade das universidades brasileiras, permitindo o surgimento e a afirmação de uma geração de intelectuais afrodescendentes cujas anĆ”lises, reflexƵes e propostas nĆ£o podem ser ignoradas por quem queira fazer do Brasil o paĆs que ele pode ser.
Nos primeiros dias deste ano, um facto bĆ”rbaro, a juntar-se a vĆ”rios outros ocorridos, Ć luz do dia, após a ascensĆ£o ao poder de um peĆ£o da extrema direita mundial, veio confirmar, como se isso ainda fosse necessĆ”rio, a importĆ¢ncia fulcral da temĆ”tica racial no Brasil: o assassinato do imigrante congolĆŖs MoĆÆse Mugenyi Kabagambe, que ousou cobrar do seu empregador, quase tĆ£o precĆ”rio quanto ele, dois dias de trabalho que estavam por pagar. O crime gerou um clamor na sociedade brasileira apenas uma semana depois da sua ocorrĆŖncia, o que confirma a dificuldade da maioria dos brasileiros de assumirem e enfrentarem o seu principal problema nacional, mas, de lĆ” para cĆ”, as crescentes reaƧƵes observadas permitem alimentar a certeza de que esse enfrentamento Ć© possĆvel.
No presente artigo, pretendo abordar brevemente, dado o espaƧo disponĆvel, um aspeto particular da necessĆ”ria discussĆ£o em torno do racismo, nĆ£o apenas no Brasil, mas em todo o mundo: raƧa ou classe, o que se coloca primeiro? Mais precisamente, pode o racismo ser resolvido āautomaticamenteā se a questĆ£o de classe for resolvida antes, como pretende uma certa vulgata marxista?
Antecipo que, para mim, tal questĆ£o Ć© semelhante ao dilema do ovo e da galinha. Antes de explicar-me melhor, tenho de dizer que a minha formação intelectual e a minha militĆ¢ncia cĆvica e polĆtica sĆ£o influenciadas de maneira determinante pelo materialismo histórico-dialĆ©tico, base conceitual e metodológica do marxismo. Entretanto, nĆ£o confundo este Ćŗltimo com o leninismo e muito menos com o estalinismo, pelo que, do ponto de vista polĆtico-partidĆ”rio, considero-me um socialista liberal (aberto do ponto de vista polĆtico e dos costumes e defensor, no plano económico-social, de polĆticas e programas baseados no princĆpio da justiƧa social, o que implica um papel preponderante, mas nĆ£o exclusivo, do Estado).
O materialismo histórico-dialético ensinou-me que toda a anÔlise precisa de ser contextualizada. Outra exigência é que a anÔlise tem de ser concreta e abrangente (universal). Tais demandas, porém, costumam ser esquecidas por certos setores da esquerda, em vÔrias partes do mundo, que, incorrendo na vulgata marxista que atrÔs mencionei, tendem a analisar os fenómenos não só de maneira uniforme, sem levar em conta os contextos, mas também unidimensionalmente, confundindo materialismo com determinismo económico. Daà a dificuldade desses setores em analisar a questão racial.
Na realidade, Ć© impossĆvel analisar um fenómeno como o racismo dessa maneira esquemĆ”tica. Em primeiro lugar, a necessidade de contextualizar implica reconhecer que a questĆ£o racial nĆ£o se coloca da mesma maneira em todos os lugares e que mesmo o racismo antinegro tem de ser analisado de maneira diferenciada (nĆ£o necessariamente oposta) nos paĆses onde os negros, mesmo em maioria, nĆ£o detĆŖm o poder e onde o detĆŖm (nĆ£o Ć© apenas a esquerda dogmĆ”tica, diga-se, que tem dificuldades em proceder a essa diferenciação; os movimentos negro-diaspóricos tambĆ©m a tĆŖm). Em segundo lugar, o racismo vai muito alĆ©m da questĆ£o de classe, embora, na sua gĆ©nese histórica e, inevitavelmente, na sua configuração contemporĆ¢nea, de um modo geral, o seja, pelo que nĆ£o bastam eventos polĆticos (por exemplo, uma revolução popular) ou medidas sociais e económicas para o superar de maneira instantĆ¢nea.
à por isso que os pobres também podem ser racistas. Foi assim, por exemplo, nas antigas colónias portuguesas, incluindo o Brasil, onde os portugueses pobres que para lÔ emigraram, voluntariamente ou não, e os seus descendentes, como eram beneficiados pelo sistema colonial, em maior ou menor grau, tendiam a discriminar racialmente as maiorias negras e as populações originÔrias desses territórios. Continua a ser assim, presentemente, no Brasil, onde a comprovada existência de milhões de favelados e pobres não-negros não elimina automaticamente as tensões raciais entre eles e os negros, pobres ou não.
O conceito de āracismo estruturalā explica o fenómeno. Se forem necessĆ”rios exemplos, o assassinato de MoĆÆse Kabagambe confirma cabalmente o que acabo de dizer, pois os seus assassinos, por certo, pertencem Ć s classes baixas, alĆ©m de nĆ£o serem ādinamarquesesā, isto Ć©, ābranquinhos purosā. Um outro exemplo pode ser retirado das recentes eleiƧƵes legislativas em Portugal (30 de janeiro de 2022), onde o partido da extrema direita racista e fascista foi o vencedor, por exemplo, em trĆŖs concelhos ā Loures, Almada e Seixal ā de grande concentração popular, bem como da imigração africana no paĆs, as quais jĆ” foram bastiƵes do Partido Comunista PortuguĆŖs. Obviamente, nĆ£o Ć© preciso desenhar.
A verdade Ć© que nĆ£o hĆ” relação direta entre situação de classe e consciĆŖncia progressista (nĆ£o-elitista, nĆ£o-racista e nĆ£o-homofóbica, entre outros quesitos). Ć por isso, repita-se, que nĆ£o basta resolver os problemas económicos e sociais e fazer ascender as classes baixas para ultrapassar o racismo e outros fenómenos, como acreditam os setores da esquerda ainda presos Ć vulgata marxista. De todo o modo, o tĆtulo deste artigo nĆ£o Ć© totalmente justo: o marxismo como o outro nome do materialismo histórico-dialĆ©tico Ć© perfeitamente capaz de compreender e superar o racismo, se nĆ£o ignorar as liƧƵes de Althusser sobre a autonomia da ideologia, assim como a importĆ¢ncia da psicanĆ”lise, demonstrada por outros teóricos, para entender e transformar os fenómenos sociais, que sĆ£o sempre protagonizados pelos indivĆduos.