šŸ”“ RaƧa e classe: alĆ©m do marxismo?

Não existe uma relação direta entre situação de classe e consciência progressista; economia, ideologia e psicanÔlise podem explicar o racismo
Ilustração: Thiago Lucas
07/02/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortogrÔfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

O Brasil é um país ao qual me sinto ligado por razões pessoais e afetivas, que têm certamente a ver com a história: cerca de 80% dos africanos transportados como escravos para o maior país latino-americano eram provenientes dos territórios que hoje constituem Angola, o meu país. Desde a minha adolescência acompanho a realidade brasileira, em especial a literatura, a música e a cultura em geral, o futebol e a política. Uma das questões brasileiras que cedo atraíram a minha questão foram e são as relações raciais no país.

Lembro-me que, em conversas com alguns amigos do Movimento Negro, no primeiro ano em que se assinalou o Dia da ConsciĆŖncia Negra (na Ć©poca eu residia no Rio de Janeiro, como correspondente da agĆŖncia angolana de notĆ­cias), eu defendi que essa data deveria ser chamada, de facto, Dia da ConsciĆŖncia Nacional. Ɖ que, na minha opiniĆ£o, o racismo (antinegro) Ć© a questĆ£o nacional brasileira. Enquanto a sociedade brasileira nĆ£o a resolver, o paĆ­s nĆ£o se hĆ” de transformar na potĆŖncia, pelo menos regional, que tem tudo para ser.

As políticas públicas adotadas pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), após o presidente Lula ter assumido a presidência pela primeira vez, começaram de facto e indesmentivelmente a mudar a realidade de discriminação e profunda segregação estrutural a que os brasileiros negros (mais escuros ou mais claros) continuam sujeitos ainda hoje. Apenas para dar um exemplo, a política de cotas raciais mudou substancialmente a realidade das universidades brasileiras, permitindo o surgimento e a afirmação de uma geração de intelectuais afrodescendentes cujas anÔlises, reflexões e propostas não podem ser ignoradas por quem queira fazer do Brasil o país que ele pode ser.

Nos primeiros dias deste ano, um facto bÔrbaro, a juntar-se a vÔrios outros ocorridos, à luz do dia, após a ascensão ao poder de um peão da extrema direita mundial, veio confirmar, como se isso ainda fosse necessÔrio, a importância fulcral da temÔtica racial no Brasil: o assassinato do imigrante congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, que ousou cobrar do seu empregador, quase tão precÔrio quanto ele, dois dias de trabalho que estavam por pagar. O crime gerou um clamor na sociedade brasileira apenas uma semana depois da sua ocorrência, o que confirma a dificuldade da maioria dos brasileiros de assumirem e enfrentarem o seu principal problema nacional, mas, de lÔ para cÔ, as crescentes reações observadas permitem alimentar a certeza de que esse enfrentamento é possível.

No presente artigo, pretendo abordar brevemente, dado o espaƧo disponĆ­vel, um aspeto particular da necessĆ”ria discussĆ£o em torno do racismo, nĆ£o apenas no Brasil, mas em todo o mundo: raƧa ou classe, o que se coloca primeiro? Mais precisamente, pode o racismo ser resolvido ā€œautomaticamenteā€ se a questĆ£o de classe for resolvida antes, como pretende uma certa vulgata marxista?

Antecipo que, para mim, tal questão é semelhante ao dilema do ovo e da galinha. Antes de explicar-me melhor, tenho de dizer que a minha formação intelectual e a minha militância cívica e política são influenciadas de maneira determinante pelo materialismo histórico-dialético, base conceitual e metodológica do marxismo. Entretanto, não confundo este último com o leninismo e muito menos com o estalinismo, pelo que, do ponto de vista político-partidÔrio, considero-me um socialista liberal (aberto do ponto de vista político e dos costumes e defensor, no plano económico-social, de políticas e programas baseados no princípio da justiça social, o que implica um papel preponderante, mas não exclusivo, do Estado).

O materialismo histórico-dialético ensinou-me que toda a anÔlise precisa de ser contextualizada. Outra exigência é que a anÔlise tem de ser concreta e abrangente (universal). Tais demandas, porém, costumam ser esquecidas por certos setores da esquerda, em vÔrias partes do mundo, que, incorrendo na vulgata marxista que atrÔs mencionei, tendem a analisar os fenómenos não só de maneira uniforme, sem levar em conta os contextos, mas também unidimensionalmente, confundindo materialismo com determinismo económico. Daí a dificuldade desses setores em analisar a questão racial.

Na realidade, é impossível analisar um fenómeno como o racismo dessa maneira esquemÔtica. Em primeiro lugar, a necessidade de contextualizar implica reconhecer que a questão racial não se coloca da mesma maneira em todos os lugares e que mesmo o racismo antinegro tem de ser analisado de maneira diferenciada (não necessariamente oposta) nos países onde os negros, mesmo em maioria, não detêm o poder e onde o detêm (não é apenas a esquerda dogmÔtica, diga-se, que tem dificuldades em proceder a essa diferenciação; os movimentos negro-diaspóricos também a têm). Em segundo lugar, o racismo vai muito além da questão de classe, embora, na sua génese histórica e, inevitavelmente, na sua configuração contemporânea, de um modo geral, o seja, pelo que não bastam eventos políticos (por exemplo, uma revolução popular) ou medidas sociais e económicas para o superar de maneira instantânea.

Ɖ por isso que os pobres tambĆ©m podem ser racistas. Foi assim, por exemplo, nas antigas colónias portuguesas, incluindo o Brasil, onde os portugueses pobres que para lĆ” emigraram, voluntariamente ou nĆ£o, e os seus descendentes, como eram beneficiados pelo sistema colonial, em maior ou menor grau, tendiam a discriminar racialmente as maiorias negras e as populaƧƵes originĆ”rias desses territórios. Continua a ser assim, presentemente, no Brasil, onde a comprovada existĆŖncia de milhƵes de favelados e pobres nĆ£o-negros nĆ£o elimina automaticamente as tensƵes raciais entre eles e os negros, pobres ou nĆ£o.

O conceito de ā€œracismo estruturalā€ explica o fenómeno. Se forem necessĆ”rios exemplos, o assassinato de MoĆÆse Kabagambe confirma cabalmente o que acabo de dizer, pois os seus assassinos, por certo, pertencem Ć s classes baixas, alĆ©m de nĆ£o serem ā€œdinamarquesesā€, isto Ć©, ā€œbranquinhos purosā€. Um outro exemplo pode ser retirado das recentes eleiƧƵes legislativas em Portugal (30 de janeiro de 2022), onde o partido da extrema direita racista e fascista foi o vencedor, por exemplo, em trĆŖs concelhos – Loures, Almada e Seixal – de grande concentração popular, bem como da imigração africana no paĆ­s, as quais jĆ” foram bastiƵes do Partido Comunista PortuguĆŖs. Obviamente, nĆ£o Ć© preciso desenhar.

A verdade Ć© que nĆ£o hĆ” relação direta entre situação de classe e consciĆŖncia progressista (nĆ£o-elitista, nĆ£o-racista e nĆ£o-homofóbica, entre outros quesitos). Ɖ por isso, repita-se, que nĆ£o basta resolver os problemas económicos e sociais e fazer ascender as classes baixas para ultrapassar o racismo e outros fenómenos, como acreditam os setores da esquerda ainda presos Ć  vulgata marxista. De todo o modo, o tĆ­tulo deste artigo nĆ£o Ć© totalmente justo: o marxismo como o outro nome do materialismo histórico-dialĆ©tico Ć© perfeitamente capaz de compreender e superar o racismo, se nĆ£o ignorar as liƧƵes de Althusser sobre a autonomia da ideologia, assim como a importĆ¢ncia da psicanĆ”lise, demonstrada por outros teóricos, para entender e transformar os fenómenos sociais, que sĆ£o sempre protagonizados pelos indivĆ­duos.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. Ɖ escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, ItĆ”lia, Cuba e Brasil, onde publicou a coletĆ¢nea de contos Filhos da PĆ”tria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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