A primeira vez que li um poema de Rilke foi na letra bem desenhada da minha avĂł. O calafrio que aquilo me deu. SĂł mais tarde descobri que o poema estava n’O livro de horas e que minha avĂł o tinha copiado na tradução de Geir Campos. E o que dizia o poema? Em sĂntese de um verso, mais ou menos isto: tira-me tudo e ainda te tenho em mim. E o que havia aĂ exatamente que causasse calafrio? Talvez que a oração de Rilke se tornasse um poema de amor obsessivo, ali, na letra meio redonda meio arrebitada da avĂł.
Era mesmo pouco provável que a avó tivesse copiado aquele poema como uma oração. Trocando em miúdos, ela pensava no avô. E o avô, em seus anos de pintura figurativa, esmerava-se nas sombras dos interiores de sacristia, nas pequenas mechas de fogo contra o escuro das capelas, nas cruzes das pequenas campas brancas dos cemitérios.  Numa breve incursão cubista, pintou a descida da cruz, um Cristo azul sem rosto, algumas freiras num interior de convento, entre as quais minha mãe menina, feito uma santinha, com um véu, servindo de modelo.
Também na fase geométrica da década de 1970, o avô fez alguns estudos em azul e branco para vitrais de igreja. Se lhe perguntassem sobre a matéria do seu interesse, ele possivelmente diria que o que lhe interessava, fosse qual fosse o assunto, eram as questões próprias da pintura, e que sacristias e cemitérios ou a geometria de cruzes e raios de luz das igrejas propiciavam ótimas condições para os seus estudos. Que ele tratava com igual desvelo no manejo do pincel um altar e um prato com maçãs, uma freira e um nu de costas. Que pintava cruzes como pintava mastros e bambuzais. A liturgia se dava no ateliê. E, sim, na fase das vibrações cromáticas dos anos de 1990, ele gostava de ouvir Bach.
Agora que vou terminando de encaixotar minha biblioteca, nesta casa vazia, reencontro O livro de horas na tradução de Geir Campos. Uma edição gasta, ainda com selo da livraria Klaxon. Vou aos poemas Da Peregrinação e lá está o Rilke da minha avó. Volto décadas na memória daquela letra desenhada que sussurra: “mesmo sem boca eu posso chamar-te!”. É ela, ironicamente ela, a avó, que me leva a ler de novo aqueles versos, agora dentro de um dos interiores ensombrados e quietos dos quadros do avô.