šŸ”“ Antropofagia e apropriação cultural

SerĆ” a antropofagia proposta por Oswald de Andrade uma modalidade de apropriação cultural ā€œavant la lettreā€?
Ilustração: FP Rodrigues
11/04/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortogrÔfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

A propósito das comemorações dos 100 anos do modernismo brasileiro, pretendo, na coluna de hoje, abordar a possível relação entre antropofagia, no sentido simbólico-cultural e, concomitantemente, político que lhe atribuiu Oswald de Andrade no seu Manifesto Antropófago (1928), e um tema da contemporaneidade: a apropriação cultural.

Escreveu ele no referido documento-tese do movimento modernista brasileiro: ā€œMas nĆ£o foram os cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabutiā€. Seguidamente, acrescentou: ā€œAntropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformĆ”-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. PorĆ©m, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistasā€.

Permitam-me um olhar estrangeiro e africano, um sƩculo depois, quando tantas Ɣguas jƔ correram por debaixo de todas as pontes, sobre duas interessantes e produtivas contradiƧƵes do manifesto andradiano.

Primeiro, a ocultação feita pelo autor da sua própria ascendĆŖncia. Afinal, sabe-se, ele tambĆ©m era filho desses falsos cruzados, desses fugitivos da civilização europeia (nĆ£o serĆ” melhor chamĆ”-los ā€œpontas de lanƧaā€ da referida civilização?) que aportaram Ć s amĆ©ricas, Ć  Ɓfrica e Ć  Asia em busca de um novo mundo, ou seja, das especiarias, do ouro e dos diamantes. De todo o modo, esse apagamento, por Oswald, das suas origens pessoais serve-nos, hoje, para relembrar um facto da história dos homens: nada impede que membros dos grupos dominantes se rebelem contra eles, lutando ao lado dos dominados e explorados. Aqueles que, atualmente, alegam, por exemplo, que brancos, homens e heterossexuais nĆ£o podem falar pelos negros, mulheres ou homossexuais precisam de aprender com as liƧƵes da história.

Segundo, a afirmação de que só as elites foram capazes de realizar a ā€œantropofagia carnalā€, expressĆ£o que tem sub-entendida, a partir de um episódio da história do Brasil (o naufrĆ”gio de um navio portuguĆŖs onde ia um bispo que foi devorado por Ć­ndios antropófagos), a absorção e deglutição daqueles que tinham chegado pelo mar numa manhĆ£ qualquer, fugidos da misĆ©ria europeia, nĆ£o apenas em busca de refĆŗgio e acolhimento, mas com claros intuitos de dominação, de que a catequese era um dos principais instrumentos.

Uma observação e uma pergunta. A observação é que fica clara, pelo menos transcorridos estes cem anos, a perspetiva autoritÔria do Manifesto Antropófago, o que, esclareço, é uma simples constatação: afinal, esse traço estÔ alinhado com a pretensão vanguardista dos modernistas. A pergunta é: serÔ mesmo que jÔ comemos os nossos antigos dominadores ou, pelo contrÔrio, continuÔmos a ser mastigados por eles, até sermos desprovidos de toda a carne, todo sangue e toda a seiva e sermos deixados sucumbir no Mediterrâneo, na fronteira entre o México e dos Estados Unidos, na SomÔlia, na Palestina, na Síria ou no Yémen?

Como leitor estrangeiro e africano, o que me chamou particularmente a atenção no Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, é a total ausência a qualquer referência aos negros brasileiros. Se hoje, um século depois, eles constituem a maioria demogrÔfica do país, na época, antes da implantação das políticas oficiais de promoção da emigração de europeus e outros povos de tez branca para o Brasil, deveriam sê-lo ainda mais. No entanto, não se vislumbra no documento qualquer referência à sua existência.

Os hoje chamados – corretamente, diga-se – povos originĆ”rios brasileiros sĆ£o, para Oswald, o Ćŗnico sinónimo de ā€œbrasilidadeā€. Proclamou ele: ā€œTupi or not tupi, that is the questionā€. Ɖ verdade que ele tambĆ©m diz que só lhe interessa ā€œo que nĆ£o Ć© meuā€, mas a expressĆ£o parece ter sentido Ćŗnico: trata-se de comer os falsos cruzados, mas tambĆ©m, provavelmente, todos aqueles que nĆ£o sejam ā€œoriginĆ”riosā€ (o manifesto Ć© omisso em relação a esse ponto, o que permite todas as especulaƧƵes), para unir a todos (quem?) ā€œsocial, económica e filosoficamenteā€.

O autor do Manifesto Antropófago nĆ£o podia saber, evidentemente, que um sĆ©culo depois um escritor africano diria: ā€œA cidadania e a identidade sĆ£o definidas pelo nascimento, pela ancestralidade e pelos factos da história [sublinhado meu]ā€. A verdade Ć© que, no caso do Brasil, nĆ£o hĆ” como ignorar e desvalorizar a contribuição negro-africana para a identidade nacional e cultural do paĆ­s. Mas Oswald de Andrade parece ter preferido apoiar-se na utopia do bom selvagem de Rousseau, para formular a sua tese.

Isto dito, tranquilizo os eventuais leitores: nĆ£o vou cancelar Oswald de Andrade nem o seu Manifesto Antropófago. Cem anos depois, ele mantĆ©m o mesmo potencial produtivo, podendo contribuir para desenhar e promover estratĆ©gias de luta polĆ­tica, económica, social e cultural para a construção de sociedades plurais, onde todos tenham rigorosamente as mesmas condiƧƵes de base e as mesmas oportunidades de afirmação. No inĆ­cio do novo sĆ©culo, a humanidade continua a precisar, como ele dizia, de uma ā€œunificação de todas as revoltas eficazes na direção do homemā€.

ā€œComamo-nos uns aos outrosā€
O antropólogo Rodney William, em Apropriação cultural, define-a como ā€œuma estratĆ©gia de dominação que visa apagar a potĆŖncia de grupos histórica e sistematicamente inferiorizados, esvaziando de significado todas as suas produƧƵes, como forma de promover seu genocĆ­dio simbólicoā€. Passando por cima do meu incómodo pessoal com a palavra ā€œpotĆŖnciaā€, assinalo o esforƧo de William a fim de manter a discussĆ£o no plano intelectual e no nĆ­vel estrutural, quando afirma que a natureza problemĆ”tica da apropriação da cultura de outrem resulta do facto de que, em regra, os grupos dominantes apropriam-se dos sĆ­mbolos e manifestaƧƵes culturais dos grupos subalternos sem o devido reconhecimento e mantendo estes Ćŗltimos numa situação de inferioridade (Ć s vezes, mesmo, sem respeito, por exemplo, por sĆ­mbolos religiosos e outros).

William tem o cuidado de dizer que a discussão acerca da apropriação cultural não é sobre indivíduos. A verdade, entretanto, é que o debate tornou-se altamente confuso e equivocado e até, muitas vezes, pessoal. Com frequência, e tal como acontece em outros níveis, não são levadas em consideração, sequer, as diferenças de contexto, que deveriam obrigar a teoria e a militância a procederem a anÔlises mais finas e rigorosas e a adotar estratégias mais efetivas.

A respeito deste tópico, é imperioso não esquecer que, em sociedades onde a dinâmica racial foi causa de forte segmentação cultural, como os Estados Unidos, exemplos de comunicação intercultural podem ser entendidos como formas de apropriação cultural, enquanto em sociedades mais expostas a diferentes religiões, nacionalidades e modos de vida, isso pode não ser visto do mesmo modo. Atrevo-me a dizer, inclusive, que a juventude, em todos os países do mundo, graças às viagens e sobretudo à televisão por satélite e às novas tecnologias de comunicação, tende a encarar este tema com menos rigidez. Mesmo nos EUA, com o crescimento de hispânicos e asiÔticos, jÔ começa a haver nuances que carecem de estudo e reflexão.

A verdade – vou dizĆŖ-lo – Ć© que trocas culturais sempre existiram, desde que o primeiro homem nascido no sudeste de Ɓfrica pĆ“s o pĆ© na estrada e povoou a Terra inteira. Como dizia o bispo Desmond Tutu, ā€œsomos todos africanosā€. TambĆ©m Ć© verdade que a humanidade nĆ£o se tem desenvolvido de um modo igual (ā€œah, mundo tĆ£o desigualā€, canta Gil), pelo que tais trocas sĆ£o sempre determinadas pelas relaƧƵes de poder existentes nos diferentes contextos. Mas Ć© impossĆ­vel deixar de reconhecer que, mesmo em condiƧƵes desiguais, as trocas acontecem.

Mais importante ainda, embora muitos o costumem esquecer: as trocas têm mão dupla. Assim, se é verdade que os grupos dominantes tendem a apropriar-se, muitas vezes abusivamente, das culturas subalternas, estas também se apropriam de elementos culturais daqueles. Não me refiro, clarifico, à assimilação cultural imposta pelos grupos dominantes aos grupos dominados, mas à apropriação natural ou mesmo deliberada, como parte da sua estratégia de luta, de elementos culturais dos primeiros por parte dos segundos.

Um exemplo da primeira via: os turbantes usados por certas mulheres africanas e que, na realidade, foram ā€œimportadosā€ dos Ć”rabes, cuja presenƧa no continente africano Ć© historicamente anterior Ć  dos europeus (assim como as prĆ”ticas de escravidĆ£o de que foram responsĆ”veis) ou os quimonos – uma espĆ©cie de blusa – usados pelas bessanganas [mulheres africanas, normalmente pertencentes aos grupos mais altos e respeitados dentro da sociedade local] de Luanda. ā€œQuimonoā€ Ć© um nome de origem japonesa e foi certamente introduzido no paĆ­s pelos portugueses, que tĆŖm um contacto secular com o JapĆ£o.

Como exemplo da apropriação estratĆ©gica de elementos culturais dos exploradores por parte dos explorados, cito a decisĆ£o de todas as antigas colónias africanas de Portugal de adotarem o portuguĆŖs como lĆ­ngua de unidade nacional, desde o inĆ­cio das lutas de libertação, e como lĆ­ngua oficial depois das respetivas independĆŖncias. Ɖ cĆ©lebre a frase de AmĆ­lcar Cabral: ā€œA lĆ­ngua foi a melhor coisa que os portugueses nos deixaramā€. NĆ£o posso tambĆ©m deixar de mencionar, aqui, o trabalho de recriação do portuguĆŖs feito por alguns escritores angolanos, dos quais o mais notĆ”vel Ć© Luandino Vieira. Se isso nĆ£o Ć© apropriação cultural, temos de repensar os conceitos.

Chegou, pois, o momento de indagar: serĆ” a antropofagia uma modalidade de apropriação cultural? Uma apropriação, digamos assim, avant la lettre? NĆ£o tenho dĆŗvidas de que sim. Relembro: ā€œSó me interessa o que nĆ£o Ć© meu. Lei do homem. Lei do antropófagoā€. Ɖ o que diz Oswald no seu manifesto. O que, no fundo, ele propƵe Ć© que todos se comam, perdĆ£o, se amem uns aos outros: ā€œFilhos do sol, mĆ£e dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados, pelos turistasā€.

Volto a Rodney William. ā€œO debate sobre apropriação cultural Ć© sobre o sistema capitalista que, visando o lucro, transforma a cultura de um povo em produto, mas nĆ£o valoriza o povo a que tal cultura pertenceā€, diz ele. Tem razĆ£o. Ɖ por isso – agora sou eu que falo – que as lutas identitĆ”rias, se nĆ£o forem enquadradas numa estratĆ©gia mais ampla, que unifique raƧa, cor, gĆ©nero, classe, religiĆ£o, paĆ­s, regiĆ£o e – por que nĆ£o? – blocos geopolĆ­ticos, estarĆ£o fadadas ao fracasso. Fragmentadas e fragmentĆ”rias, elas alimentam o capitalismo financeiro, que nĆ£o se importa a mĆ­nima com as pessoas, o monstro neoliberal, os algoritmos e seus robĆ“s. Alguns de nós lucrarĆ£o com essas lutas, monetizando as suas contas no Facebook e no Instagram e fazendo ensaios fotogrĆ”ficos para a Vogue. E a esmagadora maioria?

HĆ” cem anos – lembram-se? –, Oswald de Andrade defendia a unificação de todas as revoltas. Um sĆ©culo depois do Manifesto Antropófago, estamos mais longe disso do que naquela Ć©poca.

Parodiando uma velha palavra de ordem angolana, a luta continua e a vitória é incerta.

NOTA

Texto adaptado de uma conferência online com o mesmo título apresentada no dia 25 de março de 2022 no lançamento do projeto ALMA (Antropologia, Literatura, Modernismo e Audiovisual), uma iniciativa da Universidade Federal de São Carlos e do Polo Audiovisual da Zona da Mata, ambas instituições brasileiras, assim como da Universidade do Minho, portuguesa.

 

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. Ɖ escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, ItĆ”lia, Cuba e Brasil, onde publicou a coletĆ¢nea de contos Filhos da PĆ”tria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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