A ambiguidade Ă©, com certeza, o recurso tĂ©cnico mais sofisticado do romance Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, fundador do realismo mágico, precioso movimento latino-americano que solidificou a literatura na regiĂŁo e a colocou no mesmo nĂvel da produção europeia, segundo a avaliação da crĂtica internacional. Gerald Martin, biĂłgrafo de Gabriel GarcĂa Márquez, afirma, por exemplo, que Cem anos de SolidĂŁo colocou a literatura latino-americana definitivamente no mapa da literatura universal.
Mesmo assim é preciso destacar que tudo começa com Pedro Páramo. Um romance em que os mortos conversam, na narrativa de Juan Preciado e em cuja primeira parte se lê a história de um homem truculento, voraz e estúpido, extravagante e excêntrico, retrato sem retoques de um ditador latino e suas bestialidades.
Excentricidade e extravagância que se revelam mais tarde em nome de Suzana San Juan, a grande paixĂŁo de Pedro — e aĂ o romance perde a sua intensa carga polĂtica para se transformar num romance de amor — daĂ a sua ambiguidade, um homem que ama desesperadamente, violentamente, Ă© aquele mesmo criminoso, bandido, fazendeiro arbitrário, cujas relações sociais sĂŁo dramaticamente cruĂ©is.
Sobretudo depois que o leitor percebe que Suzana San Juan Ă© uma mulher tĂsica, que vive nua numa vala, submetida a todo tipo de dor e sofrimento. Donde se conclui que, inevitavelmente, Ă© a metáfora de uma regiĂŁo explorada, torturada, doente, que se chama AmĂ©rica Latina, capaz de provocar este amor, que produz um Guevara, concluindo-se, todavia, que Pedro jamais seria um lĂder guerrilheiro, e que Suzana nĂŁo poderia encarnar o tipo da mulher ideal consumista. Tudo isso em nome da tĂ©cnica, da mesma tĂ©cnica que Juan Rulfo Ă© criador e renovador.
Estas relações de poder e de amor resultam na criação de uma obra absolutamente gigantesca que não apenas coloca a literatura latina no mapa universal da criação, mas a supera em muitos sentidos. O que se observa no perfeito discurso indireto livre logo nas primeiras frases:
Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Minha mãe me disse.
Como se percebe, duas vozes. Tudo sob a coordenação do narrador único Juan Preciado. Essa sofisticação nos permite chegar a Cem anos de solidão e a outras obras que transformaram o romance do Continente.