Formar leitores se conjuga no feminino, assim mostra a pesquisa O Brasil que Lê, recém-apresentada pelo Itaú Cultural e pelo iiLer/Cátedra Unesco de Leitura da PUC-Rio, destacando a liderança de mulheres em 74% dos projetos analisados.
A resiliĂŞncia do ser humano a todas as atrocidades passadas e contemporâneas tambĂ©m encontra no feminino a força vital para manter-se em pĂ© e resistir Ă s mĂşltiplas barbáries que a vida em sociedade impõe, principalmente nos territĂłrios marcados pela iniquidade, pela desigualdade e pelas injustiças sociais que, estruturalmente, flagelam a maioria da população. Como Ă© o caso do nosso paĂs, por exemplo. Aqui, quando da implantação do programa Bolsa FamĂlia, que conseguiu debelar, ao menos temporariamente, uma das barbáries mais agudas, a fome secular de grande parte dos brasileiros, foi dada Ă mulher de cada famĂlia a responsabilidade de receber o auxĂlio e administrá-lo. Mais que um gesto simbĂłlico da polĂtica pĂşblica, esta atribuição de responsabilidade Ă mulher expressou o reconhecimento Ă quelas que seguram a estrutura da sobrevivĂŞncia fĂsica e espiritual dos filhos aos genitores incapacitados para o trabalho.
Refleti sobre este lugar tĂŁo evidente do feminino nas lutas sociais justamente no dia 8 de março, dia internacional de luta pela emancipação feminista, quando apresentávamos o primeiro dia do webinário de divulgação desta pesquisa que analisou profundamente os projetos de leitura e as pessoas que os criaram. Uma vez mais repetia-se um cenário que vivenciei durante toda a vida de profissional ligado ao livro e Ă leitura: ser o gĂŞnero minoritário em um tema e uma mesa com maioria de mulheres. Maioria na mesa, maioria absoluta na assistĂŞncia e no chat do Youtube comentando as falas e os resultados. Maioria tambĂ©m nos exemplos dados quando citávamos uma ou outra ação referencial ou nos referĂamos Ă s formuladoras das bases teĂłricas que orientam conceitualmente os rumos e objetivos dos projetos compilados.
Ao escrever esta coluna, terminada a leitura dos dois volumes do sensĂvel livro de Alonso Alvarez, Meia-noite na biblioteca, percebo que o autor soube extrair com zelo e maestria, em uma narrativa ficcional dirigida ao leitor juvenil de todas as idades, o quanto desta resiliĂŞncia feminina Ă© base e sustentáculo de projetos fundamentais para formar leitores e cidadania como sĂŁo, por exemplo, as bibliotecas comunitárias. Neste livro, elas sĂŁo narradas e sintetizadas a partir da inspiração proporcionada pela Biblioteca Caminhos da Leitura, instalada atĂ© há pouco no cemitĂ©rio do bairro de Parelheiros, extrema regiĂŁo sul do municĂpio de SĂŁo Paulo.
Nos dois volumes a força da resiliĂŞncia tem nome de mulheres. A garota bibliotecária Aline navega por toda a estĂłria como uma tecelĂŁ que tece todos os fios que encontra dispersos e fragmentados ao seu redor, ao mesmo tempo que conquista com sensualidade o namorado Ayo e ruboriza os quatro garotos que descobrem a biblioteca comunitária como um recanto de encantamento que lhes abre inĂşmeras janelas para o mundo. É ela tambĂ©m que toma as iniciativas, que nĂŁo se detĂ©m frente ao isolamento da pandemia ao criar alternativas em seguir com seu trabalho de mediadora de leituras, Ă© ela que organiza e equilibra afetos, interfere em jovens vidas que nĂŁo haviam encontrado a riqueza das possibilidades e Ă© ela que desfruta da singeleza profunda e bela da tambĂ©m mulher Dona Bintu, sua avĂł que fala e convive com as flores e plantas. Vem da velha anciĂŁ indĂgena, TamikuĂŁ, o elogio Ă sabedoria mĂstica dos nossos ancestrais e a atenção Ă vida na natureza que se harmoniza naquela biblioteca do cemitĂ©rio entre livros de autores austeros, cerebrais, mas igualmente sensĂveis ao humano. É no pranto da mĂŁe do menino morto por balas perdidas, cena tĂŁo cruel do cotidiano de nossas metrĂłpoles, que Alonso retrata a dor das inĂşmeras perdas de jovens mortos pela ausĂŞncia de polĂticas de segurança pĂşblica que preservem a vida e repudiem a violĂŞncia.
Não surpreende, para quem conhece a força feminina neste cenário, que apareça com toda clareza na pesquisa O Brasil que Lê, que 30% das ações de formação de leitores analisadas tenham sido articuladas com a influência da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), formada, por sua vez, por absoluta maioria de mulheres aguerridas que sabem o valor fundamental da conquista ao direito à leitura para todas e todos. São muitas as Marias, Cidas, Shirleys, Vals, Solanges, Bels, Angelas, muitas e muitas lideranças femininas e feministas que, como a ficcional Aline, estão há anos e cotidianamente na articulação de seus projetos, tão bem sintetizados na experiência real do Literasampa e da Biblioteca Caminhos da Leitura ao formularem durante a pandemia em Parelheiros os 4Ps: pão, proteção, poesia, plantio.
Como em Parelheiros, em inĂşmeras localidades desassistidas pelo poder pĂşblico, formaram-se correntes de solidariedade lĂşcida e cidadĂŁ em torno das bibliotecas de acesso pĂşblico que conseguiram se reinventar e atuar, mesmo a portas fechadas, para seguir formando leitores e auxiliar as pessoas de seu territĂłrio a viverem na pandemia.
Certamente isto nĂŁo seria possĂvel se essas lideranças que formam leitores nĂŁo estivessem preparadas conceitualmente e muito Ă frente dos atuais ocupantes do MinistĂ©rio da Educação, mentes regressivas e perversas que confundem alfabetização com formação de leitores e estĂŁo pouco preocupados em formar cidadĂŁos crĂticos e atuantes.
Foi com muita alegria que as pesquisadoras de O Brasil que LĂŞ observaram os resultados de uma das perguntas do extenso questionário respondido pelos 382 projetos analisados. Questionados sobre quais conceitos de leitura trabalhavam em seus projetos, 88% responderam que a leitura Ă© ampliação do universo cultural e fonte de conhecimento; 80% afirmaram que leitura Ă© prazer e diversĂŁo; 71% entendem a leitura como formação do pensamento crĂtico e proporciona inserção na vida sociopolĂtica e, finalmente, entendem a leitura como recurso Ă expressĂŁo criadora e proporcionadora de acesso a diferentes linguagens.
A leitura como prática escolar e alfabetização, assim como habilidade tĂ©cnica e instrumental foram, respectivamente, opções de 21% e 13% dos respondentes. Podemos deduzir com exatidĂŁo que o perfil da maioria dos projetos que formam leitores no paĂs está totalmente alinhado com o que há de mais avançado conceitualmente e em plena sintonia com as polĂticas pĂşblicas que apontaram as diretrizes para tornar o Brasil um paĂs leitor nos Ăşltimos 30 anos. Do Proler (Programa Nacional de Incentivo Ă Leitura) de 1992, ao PNLL (Plano Nacional do Livro e Leitura), de 2006, extraĂmos os conceitos hoje consagrados na Lei 13.696/2018 da PNLE — PolĂtica Nacional de Leitura e Escrita.
Vale recordar um dos conceitos expressos no PNLL que vai ao encontro desses dados virtuosos revelados pela pesquisa:
A concepção de leitura focalizada pelo Plano Ă© aquela que ultrapassa o cĂłdigo da escrita alfabĂ©tica e a mera capacidade de decifrar caracteres, percebendo-a como um processo complexo de compreensĂŁo e produção de sentidos, sujeitos a variáveis diversas, de ordens social, psicolĂłgica, fisiolĂłgica, linguĂstica entre outras. Uma perspectiva mecanicista da leitura, que pretende reduzir o ato de ler a mera reprodução do que está no texto, tem sido um dos mais graves obstáculos ao desenvolvimento da leitura e da escrita. A leitura configura um ato criativo de construção dos sentidos, realizado pelos leitores a partir de um texto criado por outro(s) sujeito(s).
Do texto sensĂvel de Meia-noite na biblioteca Ă atuação bem fundamentada dos projetos, segue o Brasil que lĂŞ, com a esperança ativa que exige compromisso dos poderes pĂşblicos na formação de leitores. Haverá o momento que esta força feminina irá parir um novo horizonte no direito Ă leitura para todos.