Isolado desde 16 de março na casa onde vive com a esposa, no Rio de Janeiro, devido Ă Covid-19, o cientista polĂtico SĂ©rgio Abranches, de 71 anos, começou as conversas para esta entrevista no inĂcio de novembro, quando a eleição presidencial nos Estados Unidos ainda estava indefinida.
Já com o resultado, Abranches, que não desgrudou da TV e da internet acompanhando o pleito em tempo real, comentou os desdobramentos da derrota do republicano Donald Trump e os primeiros impactos da eleição de Joe Biden para o comércio e a diplomacia brasileira — como se sabe, o presidente Jair Bolsonaro ainda não reconheceu Biden como presidente eleito.
Mas o assunto principal das trocas de e-mail foi O tempo dos governantes incidentais, mais recente livro do cientista polĂtico, lançado em agosto deste ano pela Companhia das Letras.
Nos ensaios do livro, entre outros assuntos, ele trata de lĂderes que chegaram ao poder por força de circunstâncias atĂpicas, entre eles o prĂłprio Jair Bolsonaro, Donald Trump e Boris Johnson, primeiro-ministro britânico. Na sua avaliação, eles nĂŁo devem durar muito no poder porque “a democracia Ă© resistente”. “SĂŁo dinossauros assombrando o mundo antes de serem extintos”, diz.
Durante o perĂodo de pandemia, Abranches tem dividido o tempo entre peças de teatro online, aulas inaugurais e palestras. TambĂ©m tem lido muitos romances. O verĂŁo tardio, de Luiz Ruffato, A tensĂŁo superficial do tempo, de CristovĂŁo Tezza, O que ela sussurra, de Noemi Jaffe, e O avesso da pele, de Jefferson TenĂłrio, foram algumas de suas leituras recentes. Livros que classifica como “de primeirĂssima qualidade”.
Autor de ensaios importantes para o tempo presente, como A era do imprevisto e Presidencialismo de coalização, o cientista polĂtico tambĂ©m Ă© autor de romances. E neste ano, foi um dos curadores da Fliraxá (Festival Literário de Araxá), que ocorreu de forma online.
• Embora o Ăşltimo tema de O tempo dos governantes incidentais seja a pandemia do novo coronavĂrus, o trabalho nĂŁo parece ter sido pensando para este ano de pandemia. A ideia Ă© uma reflexĂŁo sobre o que a democracia tem passado principalmente nestes Ăşltimos anos em locais como Brasil, Estados Unidos e RĂşssia. De qualquer forma, sĂŁo reflexões que calharam de ter sido publicadas em meio Ă Covid-19.
Exatamente, o livro é resultado de uma reflexão de alguns anos, que começou a aparecer em artigos para o Blog do Matheus Leitão, então no G1. Agora ele é colunista de Veja. Entreguei o livro à Companhia das Letras antes da pandemia. Com o impacto inicial que o isolamento teve sobre as editoras, o lançamento atrasou e pedi para fazer atualizações e um post scriptum sobre a pandemia, pois já sabia que ele só sairia por volta de junho deste ano. Este interregno me permitiu verificar, por exemplo, que os governantes incidentais foram os que lidaram pior com a epidemia e foram responsáveis por mais mortes, por omissão, irresponsabilidade e negação da ciência. Os destaques mórbidos foram Donald Trump e Jair Bolsonaro, com o Boris Johnson em segundo plano.
• E como analisa este ano atĂpico?
Este 2020 Ă© um ano interrompido. Vários processos que estavam em curso sofreram um corte ou uma parada abrupta com a chegada inesperada da pandemia. Estou falando de uma parada global, com consequĂŞncias diferenciadas localmente. Aqui, reconfigurou a polarização e isolou Bolsonaro. Nas eleições municipais, nĂŁo houve espaço para o presidente, nem para a polarização que ele provoca. Isso tem muito a ver com o fato de serem eleições municipais. Elas sempre foram muito diferentes das nacionais. Nas municipais, o eleitor pensa com uma cabeça de morador, Ă© um pleito hiperlocal; e com outra cabeça, com preocupações e preferĂŞncias distintas. Nas presidenciais, que focam os problemas comuns do Brasil, Ă© um pleito nacional, centrado na economia, principalmente. Na minha visĂŁo, 2020 encerra a transição do sĂ©culo 20 para o sĂ©culo 21. Estamos vivendo problemas novos, que nĂŁo estavam no horizonte do previsĂvel, no sĂ©culo passado, nem nas primeiras dĂ©cadas deste sĂ©culo, que continuaram enredadas com problemas herdados do anterior. Agora, teremos que construir um mundo novo. Que seja mais seguro. O longo isolamento social acelerou várias tendĂŞncias da grande transição estrutural global que analisei no meu livro A era do imprevisto e em O tempo dos governantes incidentais. A ciberesfera se expandiu para todas as atividades. Redescobrimos usos mais afetivos e mais construtivos para as redes digitais. Habituamo-nos aos encontros online. Vemos — e fazemos — lives quase todo dia. Reaprendemos o prazer da leitura. Aumentou a venda de livros. O comĂ©rcio online se expandiu. A cooperação cientĂfica global se estreitou. A pesquisa e desenvolvimento de testes, vacinas e medicamentos foi acelerada. Compulsoriamente isolados, ficamos mais cosmopolitas e mais globais.
• O senhor escreve que governantes incidentais sĂŁo assim chamados porque chegaram ao poder por circunstâncias atĂpicas. Entre outros nomes, estĂŁo na categoria Jair Bolsonaro, Donald Trump e Boris Johnson, o primeiro-ministro britânico. Na sua avaliação, eles nĂŁo devem durar muito no poder porque a democracia Ă© resistente. Ao mesmo tempo, esses governantes demonstram que tĂŞm uma base de apoio relativamente grande — aqui, penso nos 30% de eleitores que o presidente tem. NĂŁo corremos o risco de ver as ideias incidentais se sedimentarem cada vez mais, a ponto de se tornarem comuns?
Acho que nĂŁo. SĂŁo ideias minoritárias e retrĂłgradas. O avanço acelerado do tempo de que falei acima será fatal para esses governantes. SĂŁo dinossauros assombrando o mundo antes de serem extintos. Eles nĂŁo conseguem um segundo mandato, a nĂŁo ser que tenham levado a cabo o desmanche institucional que lhes permitiria manipular as eleições e serem reeleitos serialmente como alguns fizeram, o exemplo mais bem-sucedido Ă© Putin [presidente russo]. Todos tentam, mas nem todos conseguem. Nos paĂses de tradição democrática, eles tĂŞm menos chance de ĂŞxito. O Brasil tem menos tradição democrática do que os paĂses da Europa continental, do Reino Unido e dos Estados Unidos, mas tem muito mais do que Hungria, PolĂ´nia e RĂşssia. AtĂ© nosso ImpĂ©rio foi mais democrático do que o deles. Bolsonaro e Trump sĂŁo candidatos de pouco fĂ´lego. NĂŁo sabem, nĂŁo querem, nĂŁo conseguem governar. Consomem o tempo mobilizando acĂłlitos e vĂŁo perdendo os eleitores que se decepcionam com seu desempenho pĂfio na presidĂŞncia.
• AlĂ©m dos presidentes do Brasil e dos Estados Unidos, chefes de estado e de governo de outros locais sĂŁo analisados no livro, como Recep ErdoÄźan (Turquia), Vladimir Putin (RĂşssia) e Viktor Orbán (Hungria). Em certa medida, eles alteram as regras do jogo para se favorecerem. É como se mantivessem com uma ideia utilitarista do poder, da vida, cuja sĂntese está maravilhosamente descrita em Crime e castigo, de DostoiĂ©vski. Ao matar a mulher avarenta, RaskolnikĂłv, personagem principal, pensa que fazer o mal pode ser um caminho para alcançar o que considera ser o bem. É possĂvel dizer que esses lĂderes citados se consideram tĂŁo importantes, que pensam em fazer o “bem” por meio do mal?
Com certeza, alĂ©m de autocráticas, sĂŁo personalidades narcĂsicas. Trump, Bolsonaro, Boris Johnson, Putin, todos eles. Julgam-se muito mais importantes e mais capazes do que de fato sĂŁo. E todos tĂŞm um grau de psicopatia que os impede de ter as dĂşvidas morais que os personagens de DostoiĂ©vski tĂŞm. NĂŁo tĂŞm profundidade suficiente para alimentar conflitos internos. SĂł externos, com os outros, que julgam inferiores. Eles sĂŁo incapazes de duvidar de si mesmos.
• No livro o senhor diz que os governantes são incidentais porque foram elevados ao local em que estão devido a uma série de fatores que, historicamente, não devem se repetir. Nos EUA, Donald Trump, um dos expoentes de sua definição, perdeu a eleição. Ainda assim, analistas dizem que o trumpismo deve sobreviver, já que a extrema direita estadunidense segue mobilizada. A queda de Trump representa o que para os governantes incidentais?
Representa a confirmação de que, ou bem alteram as regras do jogo democrático em seu favor no primeiro mandato e movem o regime para uma autocracia, ou sĂŁo derrotados. NĂŁo acredito em “trumpismo”, sem Trump no poder. Ele nĂŁo terá dinheiro, tempo ou aptidĂŁo para manter seus seguidores mobilizados. Existe a probabilidade de que seja processado e preso pelos vários crimes que cometeu. A extrema direita segue mobilizada apenas atĂ© sua saĂda do poder. Depois, ela se fragmenta. O Partido Republicano entrará em reorganização para seguir adiante sem Trump e buscar maior sintonia com setores de classe mĂ©dia que ajudaram a derrotar Trump. O partido teve desempenho melhor que o de Trump, mas sofreu derrotas importantes e pode ainda perder duas cadeiras no Senado pela Georgia, um estado republicano que está oscilando para o Partido Democrata, pela força do movimento negro.
Bolsonaro e Trump sĂŁo candidatos de pouco fĂ´lego. NĂŁo sabem, nĂŁo querem, nĂŁo conseguem governar.
• O presidente Jair Bolsonaro ainda não parabenizou Joe Biden pela vitória. Nos últimos anos, o Itamaraty tem sido subserviente não aos EUA, mas aos EUA de Donald Trump. Com a derrota do empresário e com o fato de Bolsonaro ainda não ter acenado ao presidente eleito, como fica a relação entre Estados Unidos e Brasil?
A relação será pragmática, pelo lado dos Estados Unidos, e continuará inepta pelo lado do Brasil. Bolsonaro nĂŁo tem atributos mĂnimos de Chefe de Estado e jamais será um estadista. Ernesto AraĂşjo Ă© um diplomata ressentido e medĂocre, que anulou e alienou o aparato de enorme competĂŞncia profissional do corpo diplomático brasileiro, respeitadĂssimo no mundo todo. Faz uma gestĂŁo errática, submissa e delirante, que deixou o Brasil isolado internacionalmente, tratado como um pária. E acha isto um ato de coragem. Bolsonaro e ele erram sempre na polĂtica externa. Quebrou uma tradição, respeitada pelos generais-presidentes, de reconhecer os resultados das eleições de todos os paĂses com quem o Brasil mantĂ©m relações diplomáticas, atĂ© os comunistas. Como a Angola de Agostinho Neto, o lĂder comunista do MPLA, que se tornou presidente. O general Geisel reconheceu sua vitĂłria e o chanceler brasileiro, Saraiva Guerreiro, o visitou em Luanda. A diplomacia de Biden vai tratá-los com o merecido desprezo. Agora, do ponto de vista dos objetivos da polĂtica externa dos Estados Unidos que orientarĂŁo as decisões de Biden no campo externo, a proteção da AmazĂ´nia e o retorno ao Acordo de Paris e a recomposição ampliada das metas de redução de emissões terĂŁo consequĂŞncias negativas para o Brasil, no plano geopolĂtico, econĂ´mico e financeiro. Bolsonaro e AraĂşjo erraram e deixaram o Brasil vulnerável, ao nĂŁo reconhecer a vitĂłria de Biden, como fizeram todos os outros governos sul-americanos. Erraram e prejudicaram o Brasil, ao fazer a extrema descortesia de nĂŁo ter representante de alto escalĂŁo do governo brasileiro na posse do novo presidente boliviano, Luis Arce. Se o Chefe de Estado nĂŁo comparece, envia, pelo menos o vice-presidente. Na pior das hipĂłteses, o chanceler. A fronteira terrestre entre Brasil e BolĂvia Ă© a de maior extensĂŁo e somos importadores de gás boliviano.
• Nesse momento de governantes incidentais, soa interessante o fato de que progressistas do mundo ocidental terem torcido por Joe Biden. Ele é o que podemos chamar de a “cara” do sistema: 50 anos de vida pública, tendo sido senador do establishment, vice-presidente durante a gestão Obama (que viveu em guerras). Kamala Harris, mulher negra, é apontada como uma das responsáveis pelo aumento da prisão de negros e negras na California quando procuradora. Enquanto isso, Trump se nega a deixar a Casa Branca. O pêndulo ideológico está voltando para o centro?
No Partido Democrata, o centro foi derrotado nas eleições. Kamala Harris está no centro-esquerda do partido e Ă© um Ăcone para as minorias, filha de pai jamaicano e mĂŁe indiana, negra que se apresenta como negra, a primeira mulher a chegar Ă vice-presidĂŞncia. Que Biden a tenha escolhido como companheira de chapa Ă© um sinal eloquente de identificação com boa parte da agenda progressista dos democratas, como o Green New Deal, o combate ao racismo estrutural e Ă discriminação contra as mulheres. Quem lhe deu a vitĂłria foram as organizações de base (de negros e outras minorias) progressistas. A Alexandria Ocasio-Cortez, democrata de esquerda que foi reeleita deputada pelo distrito do Bronx, em Nova York, analisou as derrotas do partido para a Câmara e o Senado e mostrou como fizeram campanhas analĂłgicas, centradas no correio e na TV. Os que ganharam, fizeram uma combinação de porta a porta, com campanha digital, usando o Facebook e outras redes. SĂŁo todos da ala progressista. Ela explicou que, enquanto, por exemplo, os candidatos de centro e centro-direita do partido, investiram em mĂ©dia 2 mil dĂłlares no Facebook para recrutar voluntários, captar recursos, recrutar voluntários e pedir votos, os progressistas investiram, em mĂ©dia, 200 mil dĂłlares no Facebook. AlĂ©m de investir em outras mĂdias digitais tambĂ©m. NĂŁo gastaram dinheiro com correio e TV, que custam muito caro e tĂŞm baixa eficácia hoje. A campanha distrital Ă© hiperlocal, requer enlace com os movimentos sociais mais fortes em cada distrito e superfocalização da campanha digital.
• Voltando Ă obra recĂ©m-lançada. Um dos debates mais interessantes do livro Ă© o da judicialização do STF. A relação entre o presidente da Corte — Ă Ă©poca, ministro Dias Toffoli — e os presidentes dos outros poderes Ă© avaliada de forma crĂtica nos ensaios. Ainda assim, o senhor fala sobre a necessidade do fortalecimento das instituições e as razões pelas quais precisamos acreditar nelas. É possĂvel acreditar nas nossas instituições?
É preciso renovar as instituições que, ao fim e ao cabo, sĂŁo regras de procedimento, para torná-las menos vulneráveis a esta pessoalização, mandatos fixos e invioláveis, listas trĂplices compulsĂłrias, regras regimentais mais severas para as sabatinas nas comissões do Senado. Fim dos convites informais para ministros prestarem informações e implementação efetiva de pedidos de informação e convocações para depoimentos, solicitados pela minoria, nos dois casos compulsĂłrias, sob pena crime de responsabilidade. Referendo confirmatĂłrio de mandatos executivos obtidos em eleições proporcionais, na metade do mandato. A melhoria progressiva da qualidade da conversação pĂşblica na ciberesfera contribuirá para legitimar as instituições de maior credibilidade e mudar a cultura polĂtica.
• O poeta Carlos Drummond de Andrade tem um verso que diz: “E sempre no meu sempre a mesma ausência”. O contexto no poema é outro, claro, mas é como se a democracia brasileira, mesmo na República, fosse uma ausência presente sempre. Se não a democracia, ao menos o ethos democrático…
A democracia sempre será uma ausência. Não existe um ponto de chegada final, em que se atinge a democracia plena. É um alvo móvel. A realidade muda, as necessidades mudam, a dinâmica dos conflitos se altera, surgem questões, problemas e desafios novos e é preciso atualizar a democracia. Ainda mais agora, com a revolução tecnológica que estamos passando. Democracia é um horizonte ao qual tentaremos alcançar eternamente. Quanto mais avançamos em sua direção, melhor ficamos, mais democráticas as sociedades se tornam.
• “[…] Basta um exame breve das contas pĂşblicas para ver o que se gasta para subsidiar a formação privada de capital, para os empreiteiros, para financiar os barões da indĂşstria e os coronĂ©is da agricultura, sem resultados concretos sob a forma de emprego, renda e bem-estar proporcionais aos subsĂdios. […] Os ricos, no Brasil, sĂŁo tratados como se fossem a parte frágil da sociedade e sĂŁo os principais beneficiários do assistencialismo pĂşblico. Esta rede de conivĂŞncias e apadrinhamentos nĂŁo Ă© republicana, ela subverte todos os valores republicanos fundamentais.” Governos passados nada ou pouco fizeram para mudar esse cenário. Aliás, as duas gestões Lula apresentavam os grandes empresários como campeões nacionais. Como temos visto, a relação patrimonialista brasileira perpassa tambĂ©m a corrupção. De que maneira uma coisa está relacionada Ă outra, na visĂŁo do senhor?
Nosso modelo polĂtico, o presidencialismo de coalizĂŁo, sempre teve como pivĂ´s das coalizões partidos de centro-direita e de direita. Sempre tomando esses termos com certa latitude, porque os partidos brasileiros, do ponto de vista ideolĂłgico ou programático, sĂŁo espĂ©cies variadas de geleia misturando valores difusos e pragmatismo concreto. A interseção entre as coalizões e a hipercentralização do federalismo incentivam o clientelismo e, este, o toma-lá-dá-cá. Nosso orçamento e sua implementação discricionária, na boca do caixa, induzem os parlamentares a pedirem dinheiro ao governo central em troca de apoio no Congresso. Nossa polĂtica orçamentária e fiscal Ă© a maior fonte de clientelismo e corrupção, no contexto deste centralismo absoluto dos recursos. Nossa estrutura tributária foi desenhada para beneficiar os ricos e punir os pobres. O capital recebe muito mais dinheiro pĂşblico, para nada Ăştil, os subsĂdios governamentais sĂł tĂŞm servido para beneficiar empresas velhas, ineficientes, de baixa produtividade, com a morte marcada pela mudança tecnolĂłgica, ou empresas multinacionais, para fazer carro flex, sem contrapartida alguma. As startups de alta tecnologia, as de energia renovável, que geram mais emprego e bem-estar, recebem muito menos ou nada.
• A crise democrática no ocidente tem sido tema do mercado editorial de não ficção. Vários autores têm se dedicado ao assunto, como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as democracias morrem, e David Runciman em Como a democracia chega ao fim. Como o senhor vê esse interesse?
Penso que somos menos democráticos nos governos e mais democráticos na resistĂŞncia Ă autocracia, em toda nossa histĂłria. O pensamento democrático nunca venceu, mas nunca foi eliminado. A democracia está em crise porque ela Ă© analĂłgica e a revolução digital altera a equação da conversação, da participação, da influenciação, da deliberação. Muda a correlação de forças sociais. A democracia terá que mudar radicalmente porque as sociedades estĂŁo em mudança radical. Em algumas dĂ©cadas, o mundo e as sociedades nĂŁo serĂŁo mais as mesmas que sĂŁo hoje e nem as democracias. No futuro, há espaço para distopias e para utopias. No presente, há uma carĂŞncia enorme de reflexĂŁo sobre este zeitgeist, este espĂrito do tempo da grande transformação e sobre que modelos novos de sociedade e de democracia queremos. Estamos todos prisioneiros de análises conjunturais ou de pesquisas sobre o que está morrendo. Muito pouco sobre o que faremos nascer. Nada surgirá espontaneamente. O futuro será o resultado de nossas escolhas, sonhos e erros.
• Um dos ensaios de O tempo dos governantes incidentais fala sobre o aumento de temperatura no Brasil contra crĂticos ao Governo Federal, e aĂ cita o caso de escritores que foram proibidos de participar de uma festa literária. O texto nĂŁo diz, mas essas pessoas que foram impedidas sĂŁo o senhor e sua esposa, a jornalista Miriam LeitĂŁo, num boicote acontecido em Jaraguá do Sul (SC), em 2019. Esse episĂłdio contrasta com um tom esperançoso de seu livro. É possĂvel acreditar no futuro e ter esperança?
Fomos convidados para vários encontros, porque fomos barrados pela extrema direita em dois deles. Encontros muito criativos, vimos um Brasil inquieto, leitor, sonhador. Encontramos aqueles que querem fazer o futuro. Reencontrei a esperança nos brilhos dos olhos, nas lágrimas, na fome de saber de jovens, principalmente da nossa maioria, encurralada nas periferias. Uma audiĂŞncia com ampla diversidade, liberdade de expressĂŁo e de ser, a maioria que está ativa e deixando de ser silenciosa. Explosões de talentos literários nos slams; de talentos artĂsticos nos grafites. Nesta luta pelo futuro com mais tolerância, diversidade e pluralidade vencemos muitas batalhas. Mas o retrocesso continua a nos rondar. Os extremistas atacam com mais brutalidade, porque sentem que estĂŁo perdendo terreno. A violĂŞncia vai aumentar, antes de ser posta sob controle. Apesar da dureza da luta e do sofrimento que ela carrega, eu tenho a convicção de que ela faz parte do novo, enquanto os racistas, supremacistas, a extrema direita, representam um grito furioso do passado que sabe que seu destino inexorável Ă© ser passado, sem qualquer esperança de futuro.
• O senhor já prepara outro trabalho? O que pode adiantar?
Estou terminando de rever um romance sobre esse clima de crispação e preconceito que vivemos. E já pesquiso para escrever um novo ensaio, suscitado pela seguinte observação: passado este pesadelo, de governantes incidentais e pandemia, entraremos em um novo ciclo, mais avançado e acelerado da transição global, inclusive porque a reconstrução das economias poderá permitir um salto rumo aos modelos de baixo carbono e ao chamado Green New Deal. Vários paĂses adotarĂŁo variações do Green New Deal e ficarĂŁo em vantagem competitiva, forçando os outros a se moverem nesta direção tambĂ©m. Enfrentaremos novos problemas, derivados desta aceleração da mudança. SerĂŁo problemas sĂ©rios que demandarĂŁo soluções radicalmente inovadoras e com muitas repercussões na polĂtica e na democracia.