Ainda que seja um tanto desconhecido do público brasileiro, Abdulrazak Gurnah possui uma consolidada obra literÔria. O Nobel de literatura, outorgado em 2021, apenas coroa uma trajetória a conferir-lhe uma notoriedade a ponto de iniciar os processos de tradução de seus livros para o nosso idioma, dando-nos acesso a um material até então exclusivo, preso nas mãos de especialistas. Sobrevidas, de 2020, é o seu primeiro livro editado no Brasil.
Abdulrazak Gurnah nasceu no arquipĆ©lago de Zanzibar, atual TanzĆ¢nia, em 1948. Ainda muito jovem, devido aos conflitos em seu paĆs, emigrou para a Inglaterra, onde vive atĆ© hoje. Durante esse tempo, manteve uma relação muito próxima com a cultura de seu paĆs e o continente de origem, sobretudo a Ćfrica Oriental. Firmou-se como professor universitĆ”rio, ministrando aulas de literatura na Universidade de Kent.
Foi durante o exercĆcio da docĆŖncia que iniciou os seus passos na escrita. Diferentemente de outros autores consagrados, conforme nos diz em algumas entrevistas, quando jovem, nĆ£o sabia que um dia se tornaria escritor. A sua formação literĆ”ria ocorre em paralelo Ć acadĆŖmica, revelando traƧos singulares de sua escrita, mesclando a necessĆ”ria curiosidade do pesquisador com a capacidade narrativa do escritor ā evidenciada pela construção de diĆ”logos entre diversos autores africanos bastante influentes em sua produção, como Chinua Achebe, NgÅ©gÄ© wa Thiongāo, entre outros.
Ao ser laureado pela Academia Sueca, foi sublinhada a capacidade do autor em descrever, falar, pelos imigrantes na Europa ā temĆ”tica bastante presente em sua obra, cujo expoente neste sentido Ć© Paradise, ainda sem tradução para o portuguĆŖs. Simultaneamente, frisou-se a atenção dada aos efeitos do processo de colonização na Ćfrica, com destaque para a TanzĆ¢nia. Sobrevidas exemplifica este Ćŗltimo ponto.
Sobre vidas
Gurnah nĆ£o se furta Ć crĆtica ao colonizador. Poderia fazer isso por meio de uma afinada ironia, como forma de subestimar ou ridicularizar os europeus na Ćfrica; ou mesmo por meio de uma escrita quase toda repleta de elementos exclusivos das culturas africanas, esforƧando-se por remeter a uma secular autenticidade, Ć originalidade e riqueza, reforƧando o quanto disso foi destruĆdo pela ganĆ¢ncia ocidental.
Contrariamente, o autor de Sobrevidas segue por outro caminho, optando por expressar singularidades e, consequentemente, a capacidade de elaboração e interpretação das experiĆŖncias vividas por parte dos africanos ā a partir de agora, tomemos cuidado com a palavra ācolonizadoā, que perde o seu sentido no livro. Enfim, nĆ£o hĆ” preocupação em apresentar respostas, em reivindicar algo, em fornecer uma espĆ©cie de reação a todo um agressivo processo social, polĆtico e cultural que prevaleceu por mais tempo do que deveria.
Sobrevidas realƧa o cinismo europeu ante a dominação trajada de missĆ£o emancipadora e desenvolvimentista. A visĆ£o colonizadora, datada e, portanto, anacrĆ“nica, orienta-se pela suposta incapacidade de os ācolonizadosā compreenderem aquilo que realmente lhes faria bem. A isso, como sabemos, tem-se a desconsideração das experiĆŖncias pessoais e, por sua vez, das singularidades envolvidas nos processos relacionais ali evidentes. Gurnah afia a lĆ¢mina de sua crĆtica ao demonstrar a preocupação quanto Ć s relaƧƵes sociais, Ć s trocas culturais, sempre presentes em uma determinada sociedade. Em seu caso especĆfico, a TanzĆ¢nia, tais relaƧƵes ocorrerĆ£o com o que lhes estiver posto Ć mesa.
Por isso que nĆ£o Ć© somente a resistĆŖncia ao movimento colonialista que se torna algo importante para Gurnah ā embora a sua relevĆ¢ncia seja inquestionĆ”vel. Nas mesmas proporƧƵes, a própria conivĆŖncia, ou mesmo ingenuidade, de alguns que, durante aquele perĆodo, foram entusiastas da dominação europeia, e no caso de Sobrevidas, da dominação alemĆ£ e inglesa, tambĆ©m sĆ£o importantes. O que fica, independentemente do que seja, nĆ£o pode ser negligenciado enquanto fator para a construção de uma história, ou de vĆ”rias histórias.
Mistura cultural
Sobrevidas inicia com Khalifa, um trabalhador comum que tenta ganhar a vida honestamente. Pela apresentação, sabemos que ele tem origens indiana e africana, sugerindo a existĆŖncia de uma mistura cultural na TanzĆ¢nia ā importante entroncamento comercial no Oceano Ćndico. Mais do que a valorização da essĆŖncia de uma identidade cultural ou outra, importa, aqui, o que de fato estĆ” presente.
Khalifa se casa com Bi Asha, sobrinha de seu patrĆ£o, o mercador Amur Biashara. Posteriormente, conhece Ilyas, de quem se torna grande amigo, adotando a sua irmĆ£ caƧula após a ida para a guerra, iludido que se encontrava com a dominação alemĆ£ ā tratam-se de conflitos alemĆ£es decorrentes da Primeira Guerra Mundial.
Na calma narrativa de Gurnah, despontam os acontecimentos e como eles sĆ£o assimilados pelas pessoas envolvidas. O fato de Ilyas se alistar voluntariamente entre os temidos askaris (uma espĆ©cie de mercenĆ”rios locais), para lutar ao lado dos alemĆ£es, nĆ£o nos induz a um julgamento de seu carĆ”ter. Contrariamente, o escritor apresenta as razƵes que o fizeram seguir este caminho, mostrando o quanto da própria personalidade em questĆ£o foi moldada por circunstĆ¢ncias construĆdas ao longo de sua história.
Em momento seguinte, a narrativa fica centrada em Hamza, tambĆ©m recrutado pelos alemĆ£es, na Schtztruppe (a tropa oficial dos germĆ¢nicos na regiĆ£o), com os guerreiros askaris. Por sua vez, ele vem a ocupar um cargo domĆ©stico, de serviƧal, junto ao Oberleutnant, um oficial, atuando como seu assistente particular ā gerando diversos comentĆ”rios preconceituosos entre os demais recrutas que se encontram na linha de combate.
Ć por exigĆŖncia de seu oficial que Hamza aprende alemĆ£o. Chega a ler Schiller no original. E, a despeito da posição ocupada, Gurnah nĆ£o deixa de insinuar a violĆŖncia existente no domĆnio europeu no continente africano, seja pela condicionada subserviĆŖncia Ć qual Hamza se encontra submetido, seja pela finalidade com a qual o aprendizado de outro idioma lhe Ć© imposto.
Mas, claro, a violĆŖncia fĆsica existe. Concomitante Ć derrota alemĆ£, Hamza Ć© gravemente ferido durante o ataque de raiva de um oficial. Retirado do conflito, transfere-se para um acampamento a fim de se restabelecer, retornando, depois, a Zanzibar, onde, enfim, encontra Khalifa, passando a trabalhar com ele e o mercador Biashara.
Aqui, Gurnah nos entrega um belo senso de humanidade e solidariedade logo após a descrição dos conflitos que feriram Hamza. Isso porque Khalifa o acolhe em sua casa, mesmo nada sabendo sobre o seu passado e o que o levou atĆ© ali. Como consequĆŖncia da guerra, Hamza permanece calado ā chega a temer que saibam de seu conhecimento do idioma alemĆ£o, sob a pena de ser identificado como um colaborador, tendo em vista a dominação, agora, inglesa sobre o paĆs. Na convivĆŖncia entre os dois, conhece e se apaixona por Afiya, irmĆ£ de Ilyas, perdido no conflito e criada como se fosse uma filha de Khalifa e Bi Asha.
Chama atenção a importĆ¢ncia da oralidade na obra de Gurnah. SĆ£o muitas as remissƵes a conhecimentos de povos locais e passagens do AlcorĆ£o, atestando o seu vĆnculo cultural com a regiĆ£o. Entretanto, o autor nĆ£o confere um tom de exotismo ou excentricidade a este fato, pontuando-o atĆ© mesmo como referĆŖncia para que se compreenda o lugar ocupado pela cultura do colonizador ao longo do processo de dominação. Sobrevidas estĆ” longe de ser um livro contemplativo.
A despeito de seu conhecimento do idioma alemão, praticamente o único uso que Hamza faz disso é a transcrição de um poema de Schiller para a sua amada. Eis uma interessante metÔfora quanto ao fato de nada de sua história ficar para ser escrito, permanecendo no silêncio, mesmo na relação com os mais próximos, restando unicamente a oralidade como fonte primordial para que se tenha acesso às experiências singulares dos africanos com o colonialismo dos séculos 19 e 20.
Os protagonismos
Sobrevidas nĆ£o foca o colonizador. A atenção estĆ” nas relaƧƵes entre mundos e culturas distribuĆdos nas inĆŗmeras partes dos muitos territórios africanos. Por isso o silĆŖncio de Hamza se faz importante. Seguindo na terceira pessoa, o autor produz um efeito de insinuação, fazendo-nos pensar o tempo inteiro sobre o que se passa na cabeƧa de seus personagens. Ao leitor, preso em uma instigante curiosidade, resta prosseguir com a leitura de maneira a ficar em evidĆŖncia a complexidade de cada um deles. Uma complexidade, a partir de tal insinuação, que valoriza as experiĆŖncias individuais e, por sua vez, suas histórias.
Isso fica claro nos momentos em que Khalifa, sujeito desconfiado e com certo amargor adquirido com o passar do tempo, interroga Hamza, contentando-se com o silêncio na resposta. Existe sempre a expectativa de algo a ser dito, justificado. Mas a importância quanto ao que deve ser dito, justificado, encontra-se toda sobre os personagens.
Tanta coisa tinha sido arrancada de sua vida que ele às vezes ficava paralisado por uma sensação de inutilidade diante de tudo o que pudesse desejar fazer. Era uma sensação que ele combatia diariamente e que a oficina e o trabalho com a madeira, além da benéfica companhia cotidiana do carpinteiro, de alguma maneira, ajudavam a dissipar.
Definitivamente, o colonialismo Ć© importante para o entendimento da Ćfrica de Sobrevidas. AtravĆ©s das experiĆŖncias dos personagens fica nĆtido o impacto da violĆŖncia da dominação europeia, operando em um plano mais profundo. A mudanƧa da personalidade de Khalifa, com o passar dos anos, tornando-se uma pessoa mais amarga, deixa isso bastante evidente ā serve atĆ© mesmo para demarcar a passagem do tempo.
Isso denota a vulnerabilidade dos personagens do livro, desprovidos de heroĆsmo e redenção. NĆ£o estĆ£o ali para ser reverenciados, contemplados. Isso Ć© um claro artifĆcio do autor para fazer com que diferentes vozes se manifestem revelando as suas experiĆŖncias com a Ćfrica colonial e o subjugo europeu em seu intenso processo exploratório. NĆ£o hĆ” uma visĆ£o Ćŗnica, mas, sim, uma polifonia, decorrente de vivĆŖncias diferenciadas.
Assim sendo, Gurnah fica à vontade para desfazer qualquer tipo de expectativa e noção de final feliz como recompensa por tudo o que foi vivido. Isso porque, normalmente, o final feliz poderia ser admitido como o coroamento de uma trajetória, muitas vezes repleta de desafios. Trata-se de uma herança da literatura ocidental que, durante parte significativa dos séculos 19 e 20, admitia, em nome de uma noção muito precisa de missão a ser cumprida, que desafios deveriam ser enfrentados ante uma lógica previamente estabelecida de bem e correto a serem buscados.
Claro, o caminho traƧado em Sobrevidas nĆ£o Ć© novidade na literatura contemporĆ¢nea. Mas, definitivamente, sugere a ruptura com uma perspectiva de interpretação da trajetória ocidental de colonização que, em se tratando especificamente do continente africano, tem Coração das trevas como referĆŖncia para boa parte do ocidente moderno. Gurnah revira Conrad do avesso, reposicionando o foco do tema tal qual ele deve ser tratado. O dualismo civilização e barbĆ”rie Ć© vivido pelo próprio africano a descobrir o coração da Ćfrica.
Eis o motivo pelo qual Gurnah fornece uma grande aproximação com os personagens. Através disso, projeta uma consciência quanto a sua escrita, quanto ao tema tratado, porque o narrador, em terceira pessoa, poderia, de antemão, ser detentor de um conhecimento sobre a situação vivida e que ali se encontra descrita. Entretanto, é ele quem exige do leitor o constante envolvimento com a trama apresentada.
Desde o primeiro livro publicado, em 1987 (jĆ” com quase 40 anos), atĆ© os dias atuais, Abdulrazak Gurnah escreveu dez romances. Produção significativa, demonstra o nosso desconhecimento quanto a obras desse quilate. O escritor tanzaniano Ć© o primeiro de seu paĆs a ser laureado com o Nobel de literatura. Ao todo, dos 119 ganhadores, o continente africano teve apenas cinco premiados: antes dele, Wole Soyinka, Naguib Mahfuz, Nadime Gordimer e J. M. Coetzee ā os dois Ćŗltimos, brancos.
Mais do que celebrar a entrada de Abdulrazak Gurnah para um seleto rol de maiores escritores da história, a premiação deve servir para que obras como as suas sejam popularizadas, de maneira que cheguem ao grande pĆŗblico e a paĆses que nĆ£o se encontram no centro das decisƵes sobre a produção e o consumo cultural no mundo. Se Gurnah, com sua narrativa potente, conseguiu inverter a lógica do entendimento quanto ao processo de compreensĆ£o do colonialismo na Ćfrica, talvez esteja aberto agora o precedente para que se inverta igualmente o eixo dessa produção cultural, desmanchando o seu centro e espalhando focos para diversos territórios do mundo.