O poeta e romancista Paulo Scott foi o terceiro convidado da 10ÂŞ temporada do Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, com patrocĂnio do ItaĂş, por meio da Lei Federal de Incentivo Ă Cultura. Neste ano, os encontros acontecem online, com transmissĂŁo pelo YouTube, e todo conteĂşdo tambĂ©m fica disponĂvel no site do projeto.
Scott nasceu em Porto Alegre (RS), em 1966. Escritor e professor universitário, transita por diversos gêneros literários. Publicou, entre outros livros, Meu mundo versus Marta (HQ, 2021), Marrom e Amarelo (romance, 2019), Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo (poesia, 2014), Habitante irreal (romance, 2011) e Ainda orangotangos (conto, 2003), adaptado para o cinema por Gustavo Spolidoro.
Realizado desde 2006, o Paiol Literário já recebeu 74 escritores. O próximo bate-papo acontece em 8 de setembro, às 19h30, com participação da contista e romancista gaúcha Veronica Stigger. A medição dos encontros é do jornalista e escritor Rogério Pereira, editor do Rascunho.
• Leitura criativa
Qual Ă© efetivamente o peso da literatura, essa expressĂŁo cultural tĂŁo definitiva no preenchimento da existĂŞncia de qualquer pessoa? Ainda corro atrás dessa pergunta. Outra coisa Ă© essa mágica que acontece com quem se dispõe Ă leitura: entrar em uma dimensĂŁo muito especĂfica e conseguir se colocar no lugar do outro, estabelecer empatia. Isso Ă© muito mágico. O poder da literatura está nessa organização mental que Ă© sempre individual, singular, e coloca o leitor no mesmo plano do criador. Acredito muito mais em leitura criativa do que em escrita criativa. O desempenho de um livro se deve muito mais Ă Ă©poca e ao espaço em que ele Ă© lido, e tambĂ©m de certa forma Ă s idiossincrasias, curiosidades e genialidades de quem o lĂŞ, do que qualquer outra coisa. NĂŁo Ă© por outra razĂŁo que algumas obras surgem de maneira bastante expressiva e depois de um tempo desaparecem. E outras levam anos, dĂ©cadas, para serem percebidas na sua complexidade ou originalidade. É uma verdadeira batalha contra o tempo, porque Ă© diferente de uma peça de teatro, uma Ăłpera, um show — podem ficar gravados, mas sĂŁo diferentes da concretização que se dá por meio da expressĂŁo Ăşnica e direta das palavras.
• Encanto precoce
Para representar minha pequena trajetória como leitor, diria que — de alguma forma — foi minha timidez que me colocou nesse lugar, mais que qualquer outra coisa. Eu encontrava nas bibliotecas, nos livros, nas histórias em quadrinhos, uma companhia e um refúgio que não tinha em outro espaço. E também, digamos assim, uma possibilidade de me ver estrangeiro e de escapar de uma rotina ou de coisas que me eram insuficientes ou demasiadamente cruéis. Minha primeira lembrança é dos livros que minha mãe lia para mim. Depois, logo no jardim de infância, os livros da biblioteca eram mais importantes do que o intervalo. E não só por segurança, como espécie de refúgio. Tinha algo mais instigante. Em termos de linguagem mesmo, descoberta, sempre fui apaixonado pelas imagens.
• Descobertas definitivas
As histórias em quadrinhos e os livros infantis sempre foram muito importantes. É uma relação que se estabelece um pouco pela minha timidez, depois vai ganhando outras implicâncias. Já aos 14, 15 anos, por mudança de escola, começo a ter acesso a uma literatura— influenciado por amigas e amigos mais velhos — que está dentro do aspecto que chamo “altar francês”, embora fale o tempo todo que não tenho altares, pelo contrário, odeio cristalizações. Mas devo muito ao que descobri por essa idade — Sartre, Camus, Genet. Foi muito definitivo.
• Questão urgente
A construção de leitores Ă© uma das questões mais urgentes do Brasil, e evidentemente passa por uma educação de qualidade. Quando vou para algum trabalho na Europa, em Londres, fico na casa de amigos que tĂŞm filhos e percebo o nĂvel de exigĂŞncia ao qual as crianças sĂŁo submetidas, nas escolas pĂşblicas, diante da arte. Da pesquisa cientĂfica. Da problematização quase filosĂłfica daquilo que está se apresentando diante daquelas crianças tĂŁo pequenas. E aĂ vejo o quanto a percepção da literatura no nosso ensino pĂşblico, e mesmo particular, nĂŁo Ă© bem conduzida.
“Acredito muito mais em leitura criativa do que em escrita criativa.”
• Direito e literatura
Como o professor que acabei me tornando, tenho um trabalho com ĂŞnfase em uma corrente muito clara de Direito na literatura, ou Direito pela lente da literatura, que me propicia uma espĂ©cie de mediação das obras contemporâneas. NĂŁo tenho dĂşvida de que a justiça crĂtica está muito mais na arte, na literatura, do que nas instituições. Hoje, me colocando nesse ramo há mais de dois anos, faço um levantamento das obras contemporâneas que de alguma forma revelam a fragilidade e as potencialidades do que deu certo e do que deu errado nessa repactuação da nova constituição — mais democrática, sĂłlida, justa; um marco histĂłrico incontornável, que constantemente, dentro da sua promulgação, vem sendo atacada.
• Verdade ficcional
Quem está em uma rotina de aplicação do Direito parece acometido por uma insensibilidade, como se estivesse em uma máquina de insensibilização que afasta qualquer leitura crĂtica e conexĂŁo mais Ăntima com a realidade. Há sentenças, por exemplo, que nĂŁo reconhecem um estupro militar, porque dizem que a vĂtima nĂŁo gritou, nĂŁo buscou ajuda. Ou quando uma pessoa negra vai a uma delegacia fazer uma denĂşncia e depois, no MinistĂ©rio PĂşblico, com delegado e juiz, nĂŁo se reconhece que ela sofreu racismo nem injĂşria racial — dizem que nĂŁo passou de uma piada, que a piada faz parte do nosso jeito, da livre opiniĂŁo. A conexĂŁo com a realidade Ă s vezes está muito mais forte na verdade ficcional de um romance poderoso que explique muito sobre o Brasil, como Um defeito de cor [de Ana Maria Gonçalves], do que num tratado de HistĂłria ou num livro de Direito.
• Boas histórias
Até hoje me considero muito mais leitor do que escritor. Não consigo imaginar minha literatura formulada — realizada, criada — com a pretensão de que venha mudar o mundo. De que seja uma bandeira de conscientização, harmonização, e tenha personagens que vão ser paladinos da justiça, voz da esperança. Não acredito nisso. O ano em que vivi de literatura (2015) é meu livro mais corajoso, justamente porque não agradou — me trouxe inimigos e inimigas. Tem gente que nunca vai me perdoar por causa dele. Minha preocupação sempre foi contar boas histórias.
• Condição de leitor
A potência na mediação entre Direito e literatura está justamente na leitura. Na coisa poderosa que é a condição de leitor. Nesse sentido, a literatura — posso estar errado — mostra criticamente uma noção de justiça e de descumprimento ético da justiça de forma como os manuais, as academias de direito, as faculdades de direito, os tribunais, não conseguem fazer hoje.
• Potência da linguagem
No momento mais trágico da nossa vida de redemocratização, polĂtica e social, vocĂŞ vĂŞ um MinistĂ©rio PĂşblico Federal completamente inerte. Sentenças absurdas. Desembargadoras dando declarações absurdas no Twitter. Ministro nĂŁo sei de onde dando declaração absurda. Há uma incompreensĂŁo absoluta do que Ă© uma Ă©tica social, uma urgĂŞncia social. Em um paĂs que está entre os cinco mais desiguais do mundo, seria preciso um tratamento diferenciado, uma consciĂŞncia de realidade e de problematização da sociedade brasileira — que Ă© trágica — muito mais sĂ©ria, severa, serena. O debate pĂşblico que se organiza a partir de uma narrativa, mesmo que ficcional, pode revelar mais efetivamente o que Ă© o Brasil — pela potĂŞncia de linguagem e de sua lente, que Ă© jogada sobre certas idiossincrasias, certas tragĂ©dias.
• Jogo sujo
A leitura Ă© uma questĂŁo de cidadania plena que nunca se realiza no Brasil. É um paĂs marcado pela lĂłgica escravagista, que nĂŁo afeta somente as pessoas de pele escura. Afeta todas as pessoas. Esse nĂŁo ter direito, manter-se o tempo todo reificado no papel de engrenagem — de ferramenta, de peça — no jogo de saque, de exploração constante… NĂłs somos uma colĂ´nia extrativista, e parece que somos condenados a mantermo-nos no pĂłs-perĂodo colonial sob essa colonialidade que nĂŁo nos abandona. Basta ver a forma como os bancos tratam seus clientes no Brasil. NĂŁo tem coisa mais emblemática que isso.
“NĂŁo tenho dĂşvida de que a justiça crĂtica está muito mais na arte, na literatura, do que nas instituições.”
• Tornar-se escritor
Imagino que, no processo de me tornar escritor, eu tenha pesado o passar do tempo, as prioridades, as inquietações — o que efetivamente me completaria ou justificaria uma existĂŞncia Ăşnica, impregnada de urgĂŞncias e ansiedades. Imaginei que deveria pagar o preço para me descobrir alguĂ©m dedicado a essa dimensĂŁo. Nesse sentido, imagino que tenha me colocado uma nova perspectiva: uma de realização que nĂŁo tinha como professor de Direito Tributário e EconĂ´mico da PUC, nem como advogado das grandes empresas do Rio Grande do Sul, que fui durante muito tempo. Ao colocar na balança minha experiĂŞncia acadĂŞmica de mestrado e começo de doutorado, pensei que deveria dedicar alguns anos Ă experiĂŞncia de uma vida integralmente dedicada Ă literatura — se nĂŁo escrevendo, pelo menos lendo, refletindo o que seria meu papel nela. AĂ, veio o Habitante irreal (2011).
• Marco do século
Habitante irreal foi um marco na literatura brasileira, como se diz, porque foi o primeiro a colocar no centro da narrativa o Brasil de hoje. Há autores e crĂticos que falaram que o livro poderia ficar datado — as mesmas pessoas que, anos depois, aplaudem justamente essa presença do contemporâneo. É bastante interessante o quanto o Habitante — junto com outras obras, como Diário da queda (2011), do Laub — foram, como disse o CristovĂŁo Tezza, livros-marcos nesse sĂ©culo. O Habitante tem o protagonismo indĂgena, feminino. Uma tragĂ©dia que nĂŁo era falada. As pessoas diziam: “VocĂŞ vai escrever um livro sobre indĂgena, Paulo Scott?”. Veja como o mundo muda, lá de 2005, quando assinei o contrato, para o mundo de hoje.
• Largar tudo
Em termos concretos, foi muito engraçado: quando larguei o Direito, larguei tudo, as pessoas começaram a me olhar de uma forma diferente. VocĂŞ pode ser um mĂ©dico, atĂ© gerente de banco, e ser um escritor engajado, dedicado, sĂ©rio. Mas se vocĂŞ larga o conforto dessa vida… Eu nĂŁo tinha outro caminho, porque me parecia Ăłbvio o que fiz, largar tudo, abrir mĂŁo da segurança financeira. Eu nem abria meu contracheque da PUC. Era outra realidade para eu me dedicar e descobrir qual era efetivamente o vĂnculo que tenho com a literatura desde muito jovem — desde o começo, aos 12 anos, com meus primeiros poemas, atĂ© a eleição de livros definitivos. Precisava recuperar algo muito especial. Quando tinha 15 anos e comecei a ler A náusea [de Sartre], por exemplo, isso mudou minha vida. Uma mĂşsica do Jorge Ben mudou minha. Uma mĂşsica do Caetano Veloso mudou minha vida. Uma mĂşsica da Rita Lee mudou minha vida. Um Cartola mudou minha vida. Essa coisa com arte, e nĂŁo sĂł com literatura, me parecia uma dimensĂŁo que eu nĂŁo poderia, de forma consciente, negligenciar no meu percurso.
• Cegueira cultural
A frase mais inteligente que se pode formular sobre o Brasil e ser brasileiro Ă© esta: “É muito difĂcil entender o Brasil”. As cartas estĂŁo na mesa, mas somos impregnados por uma lĂłgica e uma cegueira culturais. É uma construção maleficamente arquitetada. Estou com 55 anos e sempre me pretendi alguĂ©m conectado, engajado no meu tempo, tanto que tenho essa tensĂŁo máxima com a produção literária contemporânea. Mesmo assim, com o Direito e outras questões polĂticas, estou sempre me surpreendendo com o quanto nĂŁo entendo o paĂs.
• Problema sério
A transfiguração da realidade para a narrativa ficcional, como faz Ana Maria Gonçalves em Um defeito de cor, cria uma dimensĂŁo de afetação muito forte de invisibilidades, espaços heterotĂłpicos que nĂŁo sĂŁo visĂveis e sentidos nesse caldo que Ă© um Brasil completamente iludido em várias fantasias — tĂŁo fragilizado, suscetĂvel a mitologias e mitos, mentiras, enganos. Um Brasil que se quer norte-americano. Que nĂŁo se reconhece como a criança mimada da AmĂ©rica Latina. Que nĂŁo se reconhece como o paĂs cruel e violento que Ă©. Esse paĂs adorador de Hollywood. Adorador de West Point. Adorador de, sei lá, da Bolsa de Nova York. Do american way of life. Nada mais antigo, precário e decadente do que isso. O Brasil continua apaixonado e fascinado por ter apartamento em Miami.
• Mediações de leitura
Como leitor, acredito muito nas mediações sĂ©rias, honestas, coerentes, como o Paiol Literário, o Rascunho, o Suplemento Pernambuco, a Quatro Cinco Um. Esse pessoal que tenta estabelecer um espaço de conexĂŁo com a cultura a partir da literatura. Acho que sĂŁo incrĂveis. VocĂŞ nĂŁo consegue pegar a dimensĂŁo do que Ă© a obra de uma Cidinha da Silva quando somente lĂŞ sua obra. Quantas coisas estĂŁo ditas na dicção de cronista que ela tem, a confusĂŁo entre ficção e crĂ´nica, realizada tĂŁo maravilhosamente. Algumas abordagens sĂŁo Ăşnicas. Embora no Direito e na literatura eu acabe trabalhando com obras mais fechadinhas, mais maniqueĂstas, que dĂŁo uma certa esperança e tĂŞm uma coisa mais de denĂşncia, vocĂŞ vĂŞ que há obras inacreditáveis, como As visitas que hoje estamos, [de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira] por exemplo, numa outra chave. Existe um Brasil que se revela na literatura, e nĂŁo necessariamente urbano — mas tambĂ©m urbano, já que a tragĂ©dia afeta todo mundo: pessoas brancas com dinheiro; pessoas pobres, evidentemente miseráveis; pessoas que sofrem de preconceito sistemático, como uma pessoa trans, por exemplo, uma pessoa negra.
• Ameaça
A problematização do Brasil está tĂŁo recalcada, tĂŁo submetida a uma leitura Ăşnica, que hoje emerge como essa moralidade que pretende tomar o espaço da Ă©tica social. Isso Ă© muito sĂ©rio, porque vocĂŞ tem um presidente da RepĂşblica que diz: “Primeiro minha famĂlia, primeiro eu”. E, com relação aos outros, sua Ăşnica resposta Ă©: “E daĂ?”. Há um deslocamento de moralidade, um pragmatismo egoĂsta, imediatista, que assume o comando do Brasil. Um modelo que atribui poderes quase imperiais Ă figura do presidente. VĂŞ o quĂŁo ameaçador Ă© isso?
• Boi, bala e BĂblia
O agronegĂłcio Ă© desastroso. Os caras acham que, porque levam o paĂs nas costas, tĂŞm o direito de impor ao Brasil sua prĂłpria Ăłtica — do boi, da bala, da BĂblia. O problema Ă© quando essa perspectiva individualista, que nĂŁo Ă© da Ă©tica social, da coletividade, do pacto democrático, está nas esferas do judiciário, do MinistĂ©rio PĂşblico. Na presidĂŞncia da Câmara dos Deputados, no procurador-geral da RepĂşblica. Na presidĂŞncia. É pura conveniĂŞncia, cercada de moralidade. Essa moralidade que engata num discurso religioso de alguns setores, mais empresariais, neopentecostais, que diz: “O diabo Ă© inimigo. Acabe com as religiões de matriz africana”. Essa linha tĂŁo perigosa, de um pensamento visivelmente protofascista, Ă© totalmente contrário ao que se propõe uma leitura mediada e discutida. E uma leitura criativa do que poderia ser considerada uma literatura que observa o Brasil e sua identidade. Olha esse livro da Amara Moira [Neca + 20 poemetos travessos] que acabou de ser lançado. As meninas escrevendo sobre violĂŞncia. É uma revolução.
• Momento inevitável
O Brasil já caminhava para onde está. A externalização dessas expressões — trágicas, e que está custando milhares de vidas na pandemia — era inevitável. Claro que veio no pior dos momentos. Mas o Brasil já se conduzia para um momento como esse, porque Ă© muito forte o poder de certos movimentos histĂłricos no paĂs. De alguns pactos que nĂŁo deixaram de ser realidade. A questĂŁo da segurança, do militarismo — que Ă© objeto de crĂtica da minha HQ, Meu mundo versus Marta, embora eu a tenha escrito em 2011 — está superatual. O militarismo na AmĂ©rica Latina está muito forte. Esse momento atual parecia, de alguma forma, inevitável.
• Governo condenado
SaĂ do Rio de Janeiro para morar em Santa Catarina, em 2015, porque sentia que alguma coisa estava mudando. Que tinha que ir para um lugar em que pudesse pĂ´r os pĂ©s mais no chĂŁo, sair daquela rotina cultural do Rio de Janeiro. No primeiro ano da presidente Dilma eu já dizia que ela nĂŁo ia fechar o mandato. As pessoas, nas suas bolhas, respondiam que nĂŁo. Em Santa Catarina, passando por uma cidadezinha, vi jovens, na beira da estrada, estendendo lençóis pretos que diziam: “Intervenção militar já”. Isso no começo de 2016, quando a Dilma ainda estava no poder. NĂŁo sĂŁo todas as pessoas, evidentemente, mas em Santa Catarina há uma paixĂŁo muito grande pelo totalitarismo, pelo militarismo. Há um discurso muito forte que ampara essa onda neonazista de supremacia branca, Ăłdio contra quilombolas, indĂgenas. Percebi, de fato, que o governo da presidente Dilma estava condenado. Foi aquela coisa: quando vocĂŞ acha que está tudo dominado, que pode descansar, que está tudo certo, que o grande pacto está realizado, Ă© meio que um tiro no prĂłprio pĂ©. E aĂ, deixa-se cercar pela prĂłpria arrogância, vaidade. A certeza de que vocĂŞ Ă© o condutor do mundo, que tem a solução para os oprimidos. Que sĂł vocĂŞ está certo.
• PaĂs em risco
O risco Ă democracia Ă© total. Basta olhar para o movimento que acontece hoje dentro das polĂcias militares. Olha o discurso do presidente. Olha o que está se formando: uma verdadeira doutrinação das escolas de tiro, dos clubes de caçadores, um armamento bastante significativo com pessoas encantadas com a doutrina totalmente americana de que “vou usar arma para defender minha famĂlia, defender minha fĂ© cristã”. Claro que estou lidando em uma chave muito norte-americana, mas que Ă© totalmente influente nesse grupo de pessoas. VocĂŞ tem um Braga Netto, que já falou em golpe muitas vezes. Um presidente que falou em golpe. Um procurador-geral da RepĂşblica inerte. É um governo que contrasta muito com o anterior, que deixou o MinistĂ©rio PĂşblico trabalhar, deixou a polĂcia trabalhar, nunca deu tanto dinheiro para as forças armadas, para banco, para certo setor do empresariado. Mesmo assim, foi apunhalado pelas costas. Porque houve uma falta de noção. Uma ingenuidade que esquece que democracia Ă© tensĂŁo, nĂŁo Ă© vocĂŞ estar combinado. NĂŁo tem essa de “estamos conveniados”. Democracia Ă© transparĂŞncia, Ă© tensĂŁo, Ă© cada um lutando pelo seu direito. Esse grande pacto de todo mundo amiguinho, que une banqueiro, empresário, trabalhador, como se fossem todos amigos… Tem alguma coisa errada. As traições vieram de quem mais recebeu.
“A leitura é uma questão de cidadania plena que nunca se realiza no Brasil.”
• Racismo
Existem muitos racismos no Brasil. O do Rio Grande do Sul é cruel, mas não é menos cruel que o do Rio de Janeiro, naquela ilusão do “estamos todos juntos”. Essa questão, para mim, do que é ser negro: estou num lugar muito estranho. Sempre me afirmei um homem negro, pelo modo de criação que tive. Pessoas do movimento me escrevem para dizer: “A gente discutiu o teu livro, discutimos a sua presença, e as pessoas negras falaram que você é branco”. Esse meu lugar, para poder fazer uma análise do que é ser negro no Brasil, é contaminado de esforço de entendimento. Do que é eu ter a pele clara, e até meus 11, 12 anos ter tido o cabelo liso e castanho-claro, muito claro, pele clara, e tudo mais. Como todo mestiço, seu cabelo começa a encrespar e a escurecer no começo da adolescência. Sempre me vi como uma pessoa negra, nunca como branca. Na leitura que faço, o racismo se escancarou no Brasil. É uma coisa que nunca deixou de existir, você só tem aà uma influência inevitável do presidente e da turma que o cerca, escancarando suas verdades, suas livres opiniões, seu direito de opinião. Mas o Brasil sempre foi isso.
• Colorismo
Uma comunidade negra, por toda a arquitetura malĂ©fica que nĂłs chamamos de colorismo, pode ser muito desagregada em vários espaços. Ela combate a si mesma, sem perceber o quanto Ă© vĂtima da lĂłgica estrutural. Meu livro, Marrom e Amarelo, foi o primeiro a tratar a questĂŁo do colorismo como tratou — e algumas pessoas, mais acostumadas a uma estrutura tradicional, acabaram se decepcionando: “NĂŁo tem final feliz”. Meus livros nĂŁo tĂŞm final feliz, nenhum deles. Desculpe aĂ. Obrigado por ter lido, muito feliz, mas se vocĂŞ está esperando calorzinho no coração, nĂŁo Ă© comigo. E isso que assinei contrato para o Marrom e Amarelo em 2012, bem antes da onda do racismo virar mainstream. Faz parte da tragĂ©dia.
• Elite
Tem um problema de o Brasil nĂŁo conseguir se olhar no espelho. É muito sĂ©rio isso. VocĂŞ tem uma elite que nĂŁo se admite brasileira, que continua na mesma lĂłgica espoliadora, de saque, de usurpação do paĂs. Que manda seus filhos para fora, tem casa em Miami, na França, e nĂŁo se sente engajada com o projeto de construção de um paĂs. VocĂŞ tem uma classe mĂ©dia que Ă© totalmente subalterna e office boy de luxo dessa elite, que tambĂ©m nĂŁo quer se envolver com a sujeira, com a tragĂ©dia. É uma desigualdade que contamina todo mundo.
• Presença negra
A polĂtica de cotas do governo Lula e da presidente Dilma, por exemplo, possibilitou o acesso de corpos negros ao ambiente universitário, tornando ele muito mais prĂłximo da realidade. É inacreditável, Ă s vezes, o quanto o ambiente acadĂŞmico Ă© distanciado da realidade, da problematização da realidade — e nĂŁo estou falando de utilitarismo, pragmatismo, crescimento econĂ´mico, mas de conhecer mesmo a realidade. A presença das pessoas negras no espaço acadĂŞmico trouxe uma nova linguagem, novos e melhores discursos. E elas tambĂ©m aprenderam, em um espaço que Ă© maravilhoso.
• Espelho partido
Há formulações teĂłricas de leitura do Brasil, e de apresentação do Brasil, que coloca — sobretudo nos Ăşltimos cinco anos, mas considero os Ăşltimos dez — um protagonismo da comunidade negra. NĂłs somos mais de 60% de pessoas negras no Brasil, mas a sociedade nĂŁo consegue se ver assim. Muitas pessoas que sĂŁo negras nĂŁo se veem como tal, ou nĂŁo se veem ligadas ao seu pai negro ou Ă sua ancestralidade — por razões Ăłbvias, no plano imediato Ă© muito melhor vocĂŞ dizer “sou branco” do que vocĂŞ dizer “venho de uma famĂlia negra” ou “sou negro”. Esse Ă© um problema seriĂssimo, que pega todas as camadas. Quanto mais a pessoa Ă© escura, pior ela Ă© tratada. Mais desumana ela Ă© tornada. De forma mais estigmatizada ela Ă© encarada. Infelizmente, nesse momento, inclusive pelo governo.
• Brasil destruĂdo
NĂŁo sou um escritor engajado. Muitas pessoas se frustram comigo. NĂŁo entro nesse tĂşnel. VocĂŞ nĂŁo vai ver celebridades de esquerda recomendando meus livros, nessa coisa de “ele Ă© um representante da esquerda”. Muito menos da direita. Diria que sou otimista [com relação ao futuro do paĂs] pelo engajamento polĂtico com minha escrita, que nĂŁo Ă© uma escrita engajada, mas tenta ser honesta a partir das minhas urgĂŞncias. Das minhas questões, que sĂŁo muito relacionadas Ă identidade brasileira. O Brasil está destruĂdo. Tenho certeza. Tirar os militares do poder, seja qual governo for, nĂŁo vai ser uma coisa simples. Eles ocuparam o poder e gostaram.
• Otimismo
A elite nunca lucrou tanto, mesmo num momento de pandemia — que amassou o pequeno e o mĂ©dio empresário. Uma parte do setor do agronegĂłcio está muito feliz com esse governo. E tambĂ©m uma parte dos donos de TV, como no caso neopentecostal, Jovem Pan. Adicione a isso a cultura, meio ambiente, direitos trabalhistas — tudo que foi esfacelado. A grande tragĂ©dia começou com aquela carta para o futuro do Michel Temer. E aĂ, dá para reconstruir o paĂs? Dá, mas me engajo muito com o que o Silvio de Almeida diz: vai precisar uns 20 anos para a gente retomar o ponto onde estava. E acho que Ă© atĂ© uma projeção otimista, porque as ondas cĂclicas, pelo menos atĂ© aqui, costumam acontecer de 25 em 25 anos, 30 em 30 anos. NinguĂ©m tem bola de cristal, mas sou otimista. VocĂŞ se colocar de uma maneira ativa, ter uma voz clara, explĂcita, em relação ao seu posicionamento, nĂŁo ficar omisso, nĂŁo ficar dentro da conveniĂŞncia — essa do silenciamento, por exemplo, que Ă© trágico para o paĂs. Se isso Ă© ser otimista, repito: parte da saĂda está na leitura de tudo que está sendo maravilhosamente escrito no Brasil. Por que os fascistas tĂŞm tanto medo dos poetas? Em algum momento, a arte — e a criatividade, a empatia — acabam permanecendo. NĂŁo errará a aposta quem permanecer engajado com a cultura e sua defesa.
“É inacreditável, às vezes, o quanto o ambiente acadêmico é distanciado da realidade.”
• Poeta do agora
Para desgosto de muita gente, me vejo como poeta. Acho legal que me reconheçam como romancista, mas a poesia ocupa o centro do meu fascĂnio como leitor e pensador da arte, digamos assim, garimpador das potencialidades da minha realidade, dos meus limites. Embora tenha parado de escrever poesia nos Ăşltimos meses (nĂŁo sei por quĂŞ), ela está sempre no centro do que estou fazendo. NĂŁo tenho nenhuma rotina, nenhum mĂ©todo, disciplina. O Paulo Scott do ano passado nĂŁo Ă© o deste ano. Meu modo de contar, de ver as coisas, nĂŁo Ă© o mesmo. Os romances sĂŁo sempre do zero, estou sempre reescrevendo as coisas. Chega aquele momento que digo a mim mesmo: “Chega de palhaçada. Vamos parar tudo e escrever esse livro”. Fico pensando o livro, anotações, pesquisas.
• Romance em gestação
Nesse momento, não estou escrevendo nada de ficção. Tenho feito ensaios. Estou em uma pesquisa muito forte do Direito com relação ao antifascismo no Brasil. Acho que não é um momento para perceber para onde minha intenção literária descambará. Se bem que sei mais ou menos para onde ela vai, mas prefiro muito mais ficar refletindo, entendendo a temática, as contradições e os elementos mais concretos do movimento das personagens e dos seus desejos no romance que estou programando, o Rondonópolis, do que efetivamente sentar e escrevê-lo. Tenho muitas anotações. Mas, com a pandemia, dei uma congelada.
• Peso da pandemia
Me tornei menos literário, mais filosĂłfico. De alguma forma, estou me deixando encantar por uma epistemologia que parecia meio inĂştil na urgĂŞncia da vida. E há uma busca de um olhar mais crĂtico e mais sereno, menos desarmado, para o que Ă© o Brasil. Inclusive para as pessoas que estĂŁo destruindo o Brasil, porque Ă© muito importante entender a lĂłgica delas. Tirando um espectro de pura maldade, que deve ser, sei lá, 5% dessa turma, há pessoas que tĂŞm uma lĂłgica — em suas cabeças — para defender os absurdos que defendem. Esse diálogo Ă© incontornável. Mas o que digo desse momento de pandemia Ă© o seguinte: tenho muita sorte de ter pessoas legais do meu lado. Ter uma companheira iluminada como a Morgana, ter os pais que tenho, amigos. Acho que estou passando com muita serenidade por esse processo. O que a Morgana diz Ă© que Ă s vezes fico muito engajado, muito militante.
• Culpa coletiva
Ă€s vezes fico muito angustiado com o que está acontecendo no Brasil e as pessoas nĂŁo veem. Esse jeito brasileiro de que “tudo está bem, a gente dá um jeito” Ă© trágico em todas as dimensões. Em todos os espectros. Da parte progressista ou nĂŁo, parece que a gente nĂŁo entendeu qual Ă© a responsabilidade que tem com o paĂs. E estou colocando “nĂłs”, nĂŁo estou me furtando. Cometi um erro ao me afastar do debate pĂşblico em alguns anos recentes, durante o governo Lula e Dilma, e achar que podia ser sĂł um poeta de calção e chinelo no Rio de Janeiro. Como cidadĂŁo, me afastei de um enfrentamento que nĂŁo devia ter me afastado. Todos erramos. Todos somos culpados. “Ah, mas nĂŁo votei no fulano de tal”, nĂŁo importa. NĂŁo importa. Tenha certeza que vocĂŞ poderia ter sido mais engajado do que foi. Estou falando para aquelas pessoas que dizem: “NĂŁo tenho culpa de nada”. É essa mentalidade que nos levou a esse fundo de poço — esperando ainda que o cadafalso abra, no fundo, e a gente continue a cair.
“Não errará a aposta quem permanecer engajado com a cultura e sua defesa.”
• Segurança
NĂŁo sou mais um garoto, já nĂŁo tenho mais aquele Ămpeto de quem Ă© mais jovem de causar. Começo na literatura sabendo qual Ă© meu lugar. Sou muito seguro do que quero. Se vai agradar, se nĂŁo vai agradar, nĂŁo estou nem aĂ. Quem me conhece sabe. Escrevo para mim. Se vĂŁo gostar, se vĂŁo aplaudir, nĂŁo Ă© problema meu. O que vĂŁo fazer com meus livros nĂŁo Ă© problema meu. Mesmo. O que posso Ă© me engajar na divulgação, para ser menos tiozĂŁo, ser um pouco mais equalizado no mundo contemporâneo; saber que tenho que descer do pedestal e me comunicar com os leitores, ir para as redes sociais. Esse tipo de coisa acho legal, porque Ă© um desafio, mas nĂŁo tem nada a ver com esperar agradar, aceitação. Nunca escrevi assim — como poeta, muito menos.
• Redes sociais
Sempre que estou escrevendo um livro meio que dou uma saĂda das redes sociais. Esse momento Ă© um dos mais trágicos do paĂs, e de alguma forma me engajei na comunicação com as leitoras e leitores. Coisa que nunca tinha feito com meus livros, fiz com Marrom e Amarelo. Me engajei em divulgar o que estavam postando do romance. Achei legal jogar esse jogo, atĂ© certo momento, fiz isso durante um ano e meio, aĂ parei. É uma entrega muito rica, mas cansativa. Foi uma questĂŁo de viver o tempo. Achei que tinha que pagar para ver.
• Meio atrapalhado
Sou um leitor que sempre está querendo sair do conforto. Sempre priorizei a poesia. Tenho essa paixĂŁo pela poesia, e ela fura todas as filas aqui em casa. Os autores e autoras que estĂŁo começando me mandam seus livros, e as editoras tambĂ©m me mandam. Embora eu tenha esse lugar solitário na poesia, nĂŁo faça parte de turmas de poetas, sou leitor de tudo. Tenho uma interlocução muito interessante com os editores. Tanto que há uma cobrança muito forte de vários me dizendo: “Quando quiser publicar um livro comigo, a porta está aberta”. Isso Ă© muito interessante, de algumas pessoas se conectarem com o que escrevo. Na prosa já Ă© mais complicado. Acho que nunca ganhei tanto livro na minha vida quanto estou ganhando atualmente, e livros que sĂŁo urgentes para mim. NĂŁo estou conseguindo organizar a leitura, atĂ© porque estou lendo muita coisa sobre polĂtica — e Direito, literatura, filosofia. Tem um espaço que está meio ocupado. Mas fico sofrendo muito. O que acontece Ă© que fico parando em romances incrĂveis, aliás que ano de romances incrĂveis!, porque nĂŁo tenho tempo de chegar atĂ© o final e quero logo começar outro. Acho que estou meio atrapalhado.